A discussão acalorada sobre a recente proposta de lei do BE acerca do agravamento da tributação com vista a penalizar a especulação imobiliária, recordou-nos, mais uma vez, a solidez dos fundamentos liberais do pensamento hegemónico. O líder parlamentar do CDS-PP, João Almeida, rejeitando liminarmente tal proposta, emitiu sobre a matéria o seguinte juízo: “aumenta a carga fiscal, desrespeita os proprietários – sejam grandes ou pequenos – e contribui para o desaceleramento da nossa economia.” Para este dirigente político, a compra e venda expedita de imóveis, sem lhes incorporar qualquer valor ou introduzir qualquer melhoria é, mais do que legítima, desejável para o bem da nossa economia. Enaltecem-se assim as virtudes cívicas daqueles indivíduos que têm a singular ocupação de, sem nada produzirem – bem ou serviço – arrecadarem fortunas à custa dos encargos alheios. A isto se chama especulação, em qualquer ramo em que se verifique, e tem sustentado o que se costuma designar por “economia de casino”.
Isso é bom para o comum dos mortais? Não. Recorde-se que foi precisamente a especulação imobiliária e os famigerados contratos subprime que levaram o gigante financeiro norte-americano Lehman Brothers à falência e provocaram a crise global de 2008, de que ainda hoje sentimos os desastrosos efeitos. Este tipo de transações contribui para o desenvolvimento do país? Não. Os lucros assim gerados, não só não resultam de qualquer incorporação de trabalho, como não refletem nenhuma aplicação produtiva, não constituindo um verdadeiro investimento; a não ser para a satisfação da conspicuous consumption (ostentação de bens de luxo) de alguns abonados de que falava o economista e sociólogo norte-americano Thorstein Veblen na sua famosa obra The Theory of the Leisure Class de 1899. Ao arrepio dos fatores de investimento e de emprego que podiam sustentar – e justificar – socialmente tais operações, é razoável que, numa sociedade democrática, estas sejam tributadas em proporção distinta daquelas que decorrem da atividade económica regular.
Mas é o “desrespeito pelos proprietários”, invocado por João Almeida, que traz a marca indelével da ideologia liberal. Com efeito, a afirmação do direito de propriedade como um dos direitos fundamentais consagrados pela instauração do liberalismo começou por confrontar as barreiras estamentais e os privilégios da condição aristocrática, subsumindo o princípio hierárquico (posição) no princípio aquisitivo (achievement), com a consequente possibilidade de permanente promoção (ou despromoção) social. O aristocrata é, o burguês faz-se. Nesse sentido, significou um fator de inegável progresso das sociedades. Este credo proprietarista, no entanto, rapidamente converteu a tríade utópica da “liberdade, igualdade, fraternidade”, na trilogia bem mais pragmática da “liberdade, propriedade, segurança” do doutrinarismo político oitocentista. O indivíduo-cidadão só passou a existir enquanto proprietário (que mais não fosse da sua pessoa e das suas capacidades) e só nessa medida poderia assumir plenamente a sua liberdade. A inevitável tensão entre indivíduo e sociedade decorrente deste entendimento da realidade foi, desde logo, assinalada, por exemplo, pelo aristocrata francês Alexis de Tocqueville que, com um notável sentido premonitório, referiu no programa parlamentar que redigiu em 1847, “Bientôt, ce sera entre ceux qui possèdent et ceux qui ne possèdent pas que s’établira la lutte politique; le grand champ de bataille sera la propriété, et les principales questions de la politique rouleront sur des modifications plus ou moins profondes à apporter au droit des propriétaires. Nous reverrons alors les grandes agitations publiques et les grands partis.” (cit. Patrick Savidan, Pósfacio a Crawford B. Macpherson, La Théorie Politique de l’Individualisme Possessif, Paris, Gallimard, 2004, pp. 540-541).
Passados perto de dois séculos, esta continua a ser a principal contradição da ordem liberal. Até porque, desde a sua origem, o liberalismo teve que contar com o desafio democrático e com as expetativas eminentemente distributivas que a luta pela justiça social gerava e que foram tão eloquentemente sintetizadas na fórmula encontrada pelo filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau na sua célebre obra Du Contrat Social, publicada em 1762: “nul citoyen ne soit assez opulent pour en pouvoir acheter un autre, et nul assez pauvre pour être contrainte de se vendre.” (Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social, Paris, Le Livre de Poche, 1996 [1762], p. 82).
Numa época em que se assiste à financeirização das existências e à crescente imposição do dogma do “tudo se compra e tudo se vende”, é imperativo o estabelecimento de regras básicas de funcionamento das sociedades democráticas. Quando o direito de propriedade se torna especulativo e subverte o princípio elementar da equidade, não se justificará a aplicação de sanções? Ecoam, certeiras, as recentes declarações do sociólogo português Sérgio Aires denunciando o paradigma económico comunitário, no momento em que deixa a presidência da Rede Europeia Antipobreza, organização curiosamente fundada em 1990 por iniciativa da própria Comissão Europeia: “O modelo económico é sempre o mesmo. O tipo de crescimento não produz riqueza, produz ricos. A redistribuição não acontece, a desigualdade cresce.” (Público, 16/9/2018).
Hugo Fernandez