Há textos assim. Textos que, pela sua acuidade, nos permitem entender melhor o mundo em que vivemos. Permitem-nos ver mais fundo, ver mais longe. Textos que, na profusão dos acontecimentos e na voragem de um tempo cada vez mais acelerado, descortinam o essencial, sublinhando aquilo que sempre lá esteve, mas a que nunca se deu a devida importância. E, no fundo, dando-nos a possibilidade de analisar o passado, pensar o presente e perspetivar o futuro de uma outra forma. Esses textos tornam-se tanto mais saborosos – e relevantes – quanto os seus autores estão nos antípodas do nosso posicionamento político e do quadro dos nossos valores filosóficos (ou talvez nem tanto!...).
Deparei com um texto desses na coletânea de crónicas que a revista Visão editou no passado mês de fevereiro, por ocasião do seu 25º aniversário. O que mais surpreende nesse escrito é, precisamente, o seu caráter premonitório, ao assinalar traços estruturais que só a longa duração permite percecionar em toda a sua plenitude. O texto a que nos referimos escalpeliza a realidade norte-americana contemporânea, revelando a verdadeira natureza do seu regime político. Intitulado “A extrema-direita no governo dos EUA” e abrindo com a afirmação de que “os EUA são a única democracia do mundo em que a extrema-direita governa”, o seu autor começa por chamar a atenção para o facto de quase toda a Europa romano-germânica (excetuando-se, portanto, a Inglaterra, a Irlanda e os países nórdicos) ter tido “em maior ou menor grau, uma experiência ditatorial de extrema-direita, no século XX”. Os casos referidos, sobejamente conhecidos, deram aos europeus importantes lições sobre formas de exercício não democrático do poder e de sistemática violação dos mais elementares direitos de cidadania. Ao invés, os EUA não passaram por essa experiência traumática.
Diz-nos, então, o nosso autor: “Poupados a esses grandes sofrimentos, também não aprenderam a distinguir, na prática quotidiana dos governos, entre leis democráticas e não democráticas, medidas autoritárias e não autoritárias, atuações conformes e desconformes ao Estado de Direito. Para eles, mais ou menos autoridade do Estado, mais ou menos liberdade dos indivíduos, maior ou menor respeito pela separação de poderes, mais ou menos independência dos tribunais e garantias dos arguidos, bem como mais ou menos nacionalismo, maior ou menor cooperação internacional, mais ou menos respeito pela ONU, tudo são atitudes legítimas dentro do jogo democrático, exprimindo umas o ponto de vista dos conservadores (representados sobretudo pelo Partido Republicano) e outras a linha de atuação preferida pelos liberais ou progressistas (sobretudo identificados com o Partido Democrático). Na América, por conseguinte, os limites da Democracia são mais elásticos e movediços do que na Europa, porque não há memória histórica que permita a alguém apontar o dedo e clamar: isso é igual ao que se fazia no tempo da ditadura!”
Os exemplos proclamados de nacionalismo político, de protecionismo económico e de autismo ecológico face o resto do mundo, aí estão para o demonstrar. E, como é referido no texto em questão, “os americanos não podem sentir de imediato que esse é o caminho do caos.” Quando se verificam situações como Guantanamo ou se erigem tribunais de exceção, em flagrante violação da Convenção de Genebra e das garantias mínimas de defesa jurídica em processo penal, ninguém reconhece a marca indelével do fascismo. Prossegue o nosso autor: “Quando a atual administração norte-americana proclama que, com ou sem os aliados e com ou sem a ONU, tem o direito de fazer a guerra que convém aos interesses da Nação, não há uma memória coletiva que lhe grite que Salazar é que se vangloriou de estar no mundo orgulhosamente só!” Há, assim, no seio do poder estadunidense “uma progressiva tendência para recorrer a medidas antidemocráticas de extrema-direita, ao serviço de um nacionalismo arrogante, que exige ser respeitado pelos outros mas não se sente obrigado a respeitar os outros.”
A conclusão retirada desta deriva totalitária é de uma assustadora lucidez: “A hiperpotência que quer ser exemplo e promotor da democracia no mundo (e já o foi) está hoje a ser governada por um Presidente e por um Executivo que, na sua esmagadora maioria, são controlados ou inspirados pela extrema-direita e que agem, em pleno século XXI, em conformidade com o modelo das ditaduras nacionalistas europeias do século XX. Há então o perigo de virem a instaurar um regime ditatorial nos EUA? Creio bem que não. Mas há, sim, o perigo de, como fizeram as principais ditaduras europeias do século passado, precipitar o mundo numa 3ª Guerra Mundial. Desta vez não na Europa, mas no Médio Oriente. As consequências seriam dramáticas e incalculáveis.”
Esta conclusão, à luz da governação Trump e da escalada de tensão entre os EUA – e o seu colonato judeu de Israel – e o Irão, é de uma flagrante atualidade, apesar de ter sido escrita um ano após os atentados de 11 de setembro de 2001, durante o consulado de George W. Bush (e publicada no número 497 da Visão). E pasme-se! O seu autor é o insuspeitíssimo e moderadíssimo Professor Catedrático de Direito Administrativo, Doutor Diogo Freitas do Amaral. Como justamente alertou um outro consagrado pensador português, Eduardo Lourenço, em crónica editada dois dias após esses atentados, “Os Estados Unidos, como todos os povos poderosos no auge do seu poder, só têm um inimigo: eles mesmos. (…) O seu inimigo, como o de todas as nações e culturas responsáveis, é um só: uma violência orgânica, histórica, assumida e quase convertida em modo de existência, se não em visão do mundo.” (Visão, 13/9/2001). Nesse designado “Novo Mundo”, gostaríamos de ver pensamentos tão sábios.
Hugo Fernandez