Morreu, no passado dia 26 de fevereiro, o coronel João Varela Gomes. Pouco se falou sobre o assunto. Poucas homenagens se prestaram ao decidido lutador antifascista, militante na campanha eleitoral de Humberto Delgado em 1958, envolvido na conspiração da Sé em 1959, protagonista no assalto ao quartel do Regimento de Infantaria 3 de Beja em 1962 e preso político nos calabouços da PIDE durante 6 anos, 3 dos quais em isolamento. Esse mesmo resistente que, depois do 25 de abril, liderou a 5ª Divisão do Estado-Maior das Forças Armadas, criada para organizar a informação e propaganda sobre a Revolução dos Cravos e o Movimento das Forças Armadas (a ele se devendo, por exemplo, a troca do nome da ponte sobre o Tejo de “Salazar” para “25 de Abril”) e que, com o 25 de novembro de 1975 – triste destino – foi obrigado a fugir do país, para só regressar em 1979.
No meio da irrelevância noticiosa houve, no entanto, uma notável exceção. O artigo intitulado “Marcelo não conheceu o fascismo?”, publicado no Diário de Notícias do dia 6 de março, onde, a propósito da nota de condolências endereçada à família pela Presidência da República, o jornalista Pedro Tadeu reflete, por interposta pessoa, sobre alguns pontos essenciais de como o passado recente da história portuguesa é percecionado. E se, à partida, se louva a iniciativa do mais alto magistrado da nação, invocando a “militância cívica” de Varela Gomes, logo se percebe que a homenagem encerra uma distorção fundamental sobre a natureza do regime deposto em 1974, quando se refere “a sua consistente luta contra a ditadura constitucionalizada [itálicos meus]”. Mais do que uma questão de interpretação – porque de ignorância, certamente, não se trata – a expressão “ditadura constitucionalizada” é um branqueamento descarado do fascismo português.
Não é nova esta tentativa de mascarar a natureza do denominado “Estado Novo”, a começar pelos seus promotores e apologistas e, mais tarde, pela própria academia, quer na versão revisionista de uma Maria Filomena Mónica, até às interpretações doutrinariamente orientadas de um Rui Ramos. Na esteira da distinção inicialmente proposta nos idos de setenta do século passado pelo historiador Manuel de Lucena, que defendia que o salazarismo tinha pouco a ver com o “fascismo movimento”, mas sobretudo com o “fascismo regime” – usando-se a dissidência integralista de Rolão Preto para atestar essa distinção – cedo se construiu um discurso historiográfico que antepunha ao modelo puro da Itália mussoliniana e ao radicalismo duro da Alemanha nazi, uns proclamados “brandos costumes” de inspiração católica que teriam caracterizado Portugal durante perto de meio século. Sob a capa do rigor historiográfico e de uma suposta pureza taxonómica, esquecem-se as identidades ideológicas nacionalistas e corporativistas, o caráter totalitário destes regimes, os aparelhos policiais-repressivos prevalecentes, o culto do chefe, a apologia do militarismo, do colonialismo e do racismo, os mecanismos funcionais de enquadramento da população e as cumplicidades de vária ordem estabelecidas entre essas ditaduras, nomeadamente no contexto da II Guerra Mundial. Distinções espúrias que fazem lembrar as tão artificiais, quanto irrelevantes querelas acerca da generalização do conceito de feudalismo ao regime senhorial prevalecente na Idade Média europeia ou ao anunciado modelo industrial inglês como via única e acabada de transição para o capitalismo.
Diversos nas suas idiossincrasias históricas, mas semelhantes na sua matriz sistémica, as ditaduras fascistas estabelecidas entre as guerras mundiais – e, no caso peninsular, persistentes até ao último quartel do século XX – marcaram uma realidade indelével de total falta de liberdade e ataque reiterado aos direitos mais básicos da cidadania, perseguições policiais, medo, tortura e morte para milhões de europeus, irmanados na sua desventura. Por isso, para Pedro Tadeu, que desde logo assume não ser historiador, nem académico, “Dizer, para definir o fascismo português, que se tratou, apenas, de uma «ditadura constitucionalizada» é conseguir inatacável rigor histórico, talvez mesmo para daqui a mil anos, mas é também escamotear a história real, vivida, pessoal de cada lutador político desse tempo. (…) O problema não é, insisto, de rigor histórico ou científico. O problema é outro. O problema é que quando ouvimos a palavra «fascismo» pensamos em opressão, em repressão, em escuridão. Quando ouvimos «ditadura constitucionalizada» pensamos em legislação, ordem e autoridade.”, o que leva o jornalista a concluir que “Há aqui um planeta de distância, estamos a falar de dois países diferentes.” Tem toda a razão. Varela Gomes e os milhares de antifascistas vítimas das atrocidades cometidas durante esse período negro da nossa vida coletiva certamente se teriam indignado com tamanha mistificação.
Acresce um outro ponto de extrema importância. O de que, como refere Pedro Tadeu, “Esta versão agora adotada por Marcelo Rebelo de Sousa é a demonstração de como Portugal ainda tem muitos problemas para falar do seu passado, encerrado há 43 anos: o esforço para encontrar uma formulação bacteriologicamente pura da infeção ideológica para dizer aos portugueses o que era o regime que Varela Gomes combateu é, por si só, um exercício de ideologia, pois parte da presunção de que falar sobre fascismo em Portugal é uma incorreção, uma inconveniência ou uma infelicidade.” Que o passado fascista no nosso país seja um embaraço para o atual Presidente da República é algo que é facilmente compreensível, dados os seus antecedentes familiares. Mas a sua tentativa de “dourar a pílula” acerca da ditadura salazarista-caetanista, revela um aspeto do magistério de Marcelo Rebelo de Sousa que está longe de ser despiciendo: a tentativa de gerar, a todo o custo, consensos nacionais, fazendo apelo a uma espécie de pacificação da memória, mesmo que isso implique a reescrita da nossa história. Ora, apaziguar consciências à custa de vidas desfeitas, de pessoas perseguidas, aterrorizadas, torturadas e assassinadas, de crimes que nunca foram julgados, não tem desculpa e, certamente, não merece perdão.
Como disse José Pacheco Pereira a propósito da visão distorcida que o economês nos deu durante o consulado passista e os “anos de lixo” de uma troika omnipresente, “É difícil imaginar melhor forma de autoritarismo do que chamar para o seu lado a «realidade».” (Público, 17/3/2018). Pois é.
Hugo Fernandez