A nova fase de acumulação generalizada de capital que vivemos, pela transferência maciça dos rendimentos do trabalho para o capital e crescente agravamento das condições laborais, traduzidas na precarização dos vínculos profissionais, redução dos salários e aumento do horário de trabalho – aquilo que Boaventura de Sousa Santos designa como “fascismo contratual” – bem como a prossecução de políticas austeritárias, com a consequente degradação dos mecanismos de proteção social e das condições de vida das comunidades (acesso aos bens alimentares, à habitação, à saúde e à educação), cimentam uma estrutura social profundamente desigualitária e consolidam um horizonte de pobreza junto de camadas cada vez mais alargadas da população.
Exemplos desses constrangimentos são as extraordinárias indicações constantes num relatório elaborado em Bruxelas pelos técnicos da Direção-Geral para os Assuntos Económicos e Financeiros, segundo os quais “Há espaço para ir mais longe em reformas que reduzam a proteção laboral excessiva nos contratos permanentes em países como Portugal e Espanha”(DN, 6/2/2018), bem como a posição do comissário europeu da Economia e Finanças, Pierre Moscovici, a insistir junto das autoridades portuguesas no sentido de “desblindar” mais os contratos permanentes e reduzir o alegado “excesso de proteção” aos trabalhadores dos quadros das empresas, facilitando assim os despedimentos. O grande problema para estes eurocratas é que “os custos do despedimento individual de trabalhadores permanentes sem justa causa são incertos para os empregadores” [sublinhado meu], reiterando-se a necessidade de flexibilizar os procedimentos para o afastamento abusivo daqueles que ficam sujeitos à determinação das eufemísticas “razões económicas”.
Por isso, há que contestar fortemente a narrativa do “vivermos acima das nossas possibilidades” quando, de acordo com o relatório da organização internacional de luta contra a pobreza Oxfam de janeiro deste ano, 82% da riqueza mundial produzida em 2017 está alocada a apenas 1% da população mundial, ou quando as oitenta maiores fortunas equivalem à riqueza da metade mais pobre da população mundial. Se pensarmos que, de 1980 a 2016, os 50% mais pobres do mundo terão beneficiado de 12% do crescimento, enquanto que os 1% mais ricos, usufruíram de um aumento de rendimento de 27%, calculando-se que, em 2050, os 1% mais ricos quadruplicarão a posse da metade mais desprovida da população mundial, então é imperativo questionarmos a justeza da destruição dos direitos de todos para a defesa da riqueza de alguns.
Outro exemplo concludente da barbárie que significa a atual ordem globalizada neoliberal, foi-nos dado, há poucos dias, pela apreciação da agência de notação financeira norte-americana Moody’s a propósito dos impactos das despesas de saúde na atribuição dos ratings dos países. Fazendo apanágio de um cinismo e desfaçatez absolutas, diz-nos a vice-presidente da agência, Kathrin Muehlbronner, no seu mais recente relatório que “A saúde irá tornar-se um aspeto cada vez mais importante na nossa avaliação de crédito. Todos os Estados membros da União Europeia serão confrontados com pressões para aumentar a despesa relacionada com a saúde, o que será refletido na nossa avaliação sobre a solidez orçamental” (DN, 6/2/2018), especificando que “no longo prazo espera-se que Portugal, Malta, Croácia e Eslováquia sejam particularmente afetados, com uma subida da despesa com saúde de quatro ou mais pontos percentuais do produto interno bruto até 2060”. Ficamos estupefactos com a enorme desumanidade da relação estabelecida entre o envelhecimento da população e a notação a ser atribuída aos países em causa. Será que para assegurar a solidez financeira dos países, a Moody’s advoga o extermínio dos idosos?
A profunda mercantilização da existência humana a que se assiste – e de que já falava, nos idos de oitocentos, Karl Marx – nutre-se do darwinismo social prevalecente no pensamento hegemónico. Tendo como única e determinante prova capacitária a acumulação de riqueza e propriedade, tal teoria – totalmente alheia às conclusões científicas do próprio Charles Darwin para o mundo natural – advoga uma luta sem quartel entre todos, através de uma concorrência desenfreada entre indivíduos, empresas, instituições e países na conquista de um incensado sucesso social. Este autêntico jogo de soma nula, em que a vitória de uns (poucos) se faz à custa do fracasso dos outros (muitos) – cultivando, simultaneamente, sentimentos de culpabilidade junto destes para conseguir a aceitação resignada da sua pretensa mediocridade – tem, de resto, raízes profundas no pensamento liberal. Como nos lembra o economista Manuel Couret Branco, “A teoria liberal justifica a propriedade enquanto direito humano, sustentando-se na sua putativa virtude emancipadora, na sua capacidade de conferir ao indivíduo liberdade e independência. A mesma teoria liberal menospreza, contudo, a sujeição do indivíduo que a propriedade também implicaria para quem não a possui.” (Manuel Couret Branco, Economia Política dos Direitos Humanos, Lisboa, Sílabo, 2012, p. 22).
Há século e meio, e denunciando o que apelidava de “velha doença democrática”, o sempre lúcido Alexis de Tocqueville, no programa parlamentar que redigiu em 1847, alertava precisamente para o facto de que “La Révolution française, qui a aboli tous les privilèges et détruit tous les droits exclusifs, en a pourtant laissé subsister un, celui de la propriété.” Para o autor oitocentista, dotado de um notável sentido premonitório, seria este o “grande campo de batalha” político e social futuro. Pela sua relevância, vale a pena atentar num trecho mais desenvolvido das suas palavras: “Bientôt, ce sera entre ceux qui possèdent et ceux qui ne possèdent pas que s’établira la lutte politique; le grand champ de bataille sera la propriété, et les principales questions de la politique rouleront sur des modifications plus ou moins profondes à apporter au droit des propriétaires. Nous reverrons alors les grandes agitations publiques et les grands partis.” (Patrick Savidan, Pósfacio a Crawford B. Macpherson, La Théorie Politique de l’Individualisme Possessif, Paris, Gallimard, 2004, pp. 540-541).
A posse de propriedade significará, em todos os casos, a justa retribuição do mérito, da determinação ou dos sacrifícios realizados? Será o sucesso social uma decorrência necessária e suficiente da virtude individual? Na obra clássica da sociologia política The Power Elite, de 1956, o sociólogo americano C. Wright Mills contesta precisamente esta visão das coisas, pondo em causa as explicações sociais dadas a partir de traços pessoais ou de personalidade. Diz-nos este autor que “A prova da «capacidade», por exemplo, numa sociedade em que o dinheiro é um valor soberano é tida geralmente como a habilidade de ganhá-lo: «Se você é tão inteligente, por que não é rico?» E se o critério da capacidade é o dinheiro que se ganha, certamente a capacidade é reconhecida segundo a riqueza e os muito ricos são os de maior capacidade.” Ao invés, Mills defende que a explicação deve ser “proporcionada por circunstâncias mais objetivas” das oportunidades postas à disposição dos indivíduos, não sendo possível usar para o efeito “menções anedóticas da astúcia ou da sagacidade, do dogmatismo ou da determinação, da inteligência natural ou da sorte mágica, do fanatismo ou da energia sobre-humana dos muito ricos, como indivíduos.” (C. Wright Mills, A Elite do Poder, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, pp. 116-117).
Esta obsessão plutocrática está, no entanto, bem patente na referência que Mills faz da década de 20 do século passado, quando o presidente da General Electric era considerado demasiado importante para ser presidente dos Estados Unidos (Mills, op. cit., p. 104). O próprio Owen D. Young declarou à revista Fortune de março de 1931, que “Uma certa dose de gracejo rude é necessária como efeito teatral para o funcionamento do governo democrático. O mundo aprendeu que pode tolerar um certo volume de brincadeira na política. Isso leva a compreender que não se pode brincar em Economia (…) Nada mais claro, na experiência dos últimos dez anos, do que a necessidade de manter nossa máquina económica, e especialmente nossas finanças, livres do domínio e controle pela política” (Mills, op. cit., pp. 104-105). Tendo em conta os tempos trumpistas mais recentes, esta afirmação é particularmente elucidativa.
Face ao avolumar das desigualdades e aos crescentes fatores de injustiça social, preferimos fazer nossa a mensagem central emanada do Fórum Social Mundial, reunido pela primeira vez na cidade brasileira de Porto Alegre, no Brasil, em 2001: “um outro mundo é possível”. Tem que ser possível!
Hugo Fernandez