Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Sexta-feira, 16 de Fevereiro de 2018
UM OUTRO MUNDO

A nova fase de acumulação generalizada de capital que vivemos, pela transferência maciça dos rendimentos do trabalho para o capital e crescente agravamento das condições laborais, traduzidas na precarização dos vínculos profissionais, redução dos salários e aumento do horário de trabalho – aquilo que Boaventura de Sousa Santos designa como “fascismo contratual” – bem como a prossecução de políticas austeritárias, com a consequente degradação dos mecanismos de proteção social e das condições de vida das comunidades (acesso aos bens alimentares, à habitação, à saúde e à educação), cimentam uma estrutura social profundamente desigualitária e consolidam um horizonte de pobreza junto de camadas cada vez mais alargadas da população.

Exemplos desses constrangimentos são as extraordinárias indicações constantes num relatório elaborado em Bruxelas pelos técnicos da Direção-Geral para os Assuntos Económicos e Financeiros, segundo os quais “Há espaço para ir mais longe em reformas que reduzam a proteção laboral excessiva nos contratos permanentes em países como Portugal e Espanha”(DN, 6/2/2018), bem como a posição do comissário europeu da Economia e Finanças, Pierre Moscovici, a insistir junto das autoridades portuguesas no sentido de “desblindar” mais os contratos permanentes e reduzir o alegado “excesso de proteção” aos trabalhadores dos quadros das empresas, facilitando assim os despedimentos. O grande problema para estes eurocratas é que “os custos do despedimento individual de trabalhadores permanentes sem justa causa são incertos para os empregadores” [sublinhado meu], reiterando-se a necessidade de flexibilizar os procedimentos para o afastamento abusivo daqueles que ficam sujeitos à determinação das eufemísticas “razões económicas”.

Por isso, há que contestar fortemente a narrativa do “vivermos acima das nossas possibilidades” quando, de acordo com o relatório da organização internacional de luta contra a pobreza Oxfam de janeiro deste ano, 82% da riqueza mundial produzida em 2017 está alocada a apenas 1% da população mundial, ou quando as oitenta maiores fortunas equivalem à riqueza da metade mais pobre da população mundial. Se pensarmos que, de 1980 a 2016, os 50% mais pobres do mundo terão beneficiado de 12% do crescimento, enquanto que os 1% mais ricos, usufruíram de um aumento de rendimento de 27%, calculando-se que, em 2050, os 1% mais ricos quadruplicarão a posse da metade mais desprovida da população mundial, então é imperativo questionarmos a justeza da destruição dos direitos de todos para a defesa da riqueza de alguns.

Outro exemplo concludente da barbárie que significa a atual ordem globalizada neoliberal, foi-nos dado, há poucos dias, pela apreciação da agência de notação financeira norte-americana Moody’s a propósito dos impactos das despesas de saúde na atribuição dos ratings dos países. Fazendo apanágio de um cinismo e desfaçatez absolutas, diz-nos a vice-presidente da agência, Kathrin Muehlbronner, no seu mais recente relatório que “A saúde irá tornar-se um aspeto cada vez mais importante na nossa avaliação de crédito. Todos os Estados membros da União Europeia serão confrontados com pressões para aumentar a despesa relacionada com a saúde, o que será refletido na nossa avaliação sobre a solidez orçamental” (DN, 6/2/2018), especificando que “no longo prazo espera-se que Portugal, Malta, Croácia e Eslováquia sejam particularmente afetados, com uma subida da despesa com saúde de quatro ou mais pontos percentuais do produto interno bruto até 2060”. Ficamos estupefactos com a enorme desumanidade da relação estabelecida entre o envelhecimento da população e a notação a ser atribuída aos países em causa. Será que para assegurar a solidez financeira dos países, a Moody’s advoga o extermínio dos idosos?

A profunda mercantilização da existência humana a que se assiste – e de que já falava, nos idos de oitocentos, Karl Marx – nutre-se do darwinismo social prevalecente no pensamento hegemónico. Tendo como única e determinante prova capacitária a acumulação de riqueza e propriedade, tal teoria – totalmente alheia às conclusões científicas do próprio Charles Darwin para o mundo natural – advoga uma luta sem quartel entre todos, através de uma concorrência desenfreada entre indivíduos, empresas, instituições e países na conquista de um incensado sucesso social. Este autêntico jogo de soma nula, em que a vitória de uns (poucos) se faz à custa do fracasso dos outros (muitos) – cultivando, simultaneamente, sentimentos de culpabilidade junto destes para conseguir a aceitação resignada da sua pretensa mediocridade – tem, de resto, raízes profundas no pensamento liberal. Como nos lembra o economista Manuel Couret Branco, “A teoria liberal justifica a propriedade enquanto direito humano, sustentando-se na sua putativa virtude emancipadora, na sua capacidade de conferir ao indivíduo liberdade e independência. A mesma teoria liberal menospreza, contudo, a sujeição do indivíduo que a propriedade também implicaria para quem não a possui.” (Manuel Couret Branco, Economia Política dos Direitos Humanos, Lisboa, Sílabo, 2012, p. 22).

Há século e meio, e denunciando o que apelidava de “velha doença democrática”, o sempre lúcido Alexis de Tocqueville, no programa parlamentar que redigiu em 1847, alertava precisamente para o facto de que “La Révolution française, qui a aboli tous les privilèges et détruit tous les droits exclusifs, en a pourtant laissé subsister un, celui de la propriété.” Para o autor oitocentista, dotado de um notável sentido premonitório, seria este o “grande campo de batalha” político e social futuro. Pela sua relevância, vale a pena atentar num trecho mais desenvolvido das suas palavras: “Bientôt, ce sera entre ceux qui possèdent et ceux qui ne possèdent pas que s’établira la lutte politique; le grand champ de bataille sera la propriété, et les principales questions de la politique rouleront sur des modifications plus ou moins profondes à apporter au droit des propriétaires. Nous reverrons alors les grandes agitations publiques et les grands partis.” (Patrick Savidan, Pósfacio a Crawford B. Macpherson, La Théorie Politique de l’Individualisme Possessif, Paris, Gallimard, 2004, pp. 540-541).

A posse de propriedade significará, em todos os casos, a justa retribuição do mérito, da determinação ou dos sacrifícios realizados? Será o sucesso social uma decorrência necessária e suficiente da virtude individual? Na obra clássica da sociologia política The Power Elite, de 1956, o sociólogo americano C. Wright Mills contesta precisamente esta visão das coisas, pondo em causa as explicações sociais dadas a partir de traços pessoais ou de personalidade. Diz-nos este autor que “A prova da «capacidade», por exemplo, numa sociedade em que o dinheiro é um valor soberano é tida geralmente como a habilidade de ganhá-lo: «Se você é tão inteligente, por que não é rico?» E se o critério da capacidade é o dinheiro que se ganha, certamente a capacidade é reconhecida segundo a riqueza e os muito ricos são os de maior capacidade.” Ao invés, Mills defende que a explicação deve ser “proporcionada por circunstâncias mais objetivas” das oportunidades postas à disposição dos indivíduos, não sendo possível usar para o efeito “menções anedóticas da astúcia ou da sagacidade, do dogmatismo ou da determinação, da inteligência natural ou da sorte mágica, do fanatismo ou da energia sobre-humana dos muito ricos, como indivíduos.” (C. Wright Mills, A Elite do Poder, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, pp. 116-117).

Esta obsessão plutocrática está, no entanto, bem patente na referência que Mills faz da década de 20 do século passado, quando o presidente da General Electric era considerado demasiado importante para ser presidente dos Estados Unidos (Mills, op. cit., p. 104). O próprio Owen D. Young declarou à revista Fortune de março de 1931, que “Uma certa dose de gracejo rude é necessária como efeito teatral para o funcionamento do governo democrático. O mundo aprendeu que pode tolerar um certo volume de brincadeira na política. Isso leva a compreender que não se pode brincar em Economia (…) Nada mais claro, na experiência dos últimos dez anos, do que a necessidade de manter nossa máquina económica, e especialmente nossas finanças, livres do domínio e controle pela política” (Mills, op. cit., pp. 104-105). Tendo em conta os tempos trumpistas mais recentes, esta afirmação é particularmente elucidativa.

Face ao avolumar das desigualdades e aos crescentes fatores de injustiça social, preferimos fazer nossa a mensagem central emanada do Fórum Social Mundial, reunido pela primeira vez na cidade brasileira de Porto Alegre, no Brasil, em 2001: “um outro mundo é possível”. Tem que ser possível!


Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 00:22
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Novembro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
14
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30


posts recentes

Relações Luso-Nipónicas –...

INTERROGAÇÕES

A transformação digital n...

Carta Aberta ao universo ...

FACES DA DESIGUALDADE

A COMPARAÇÃO

A FUSÃO

AJUSTE DE CONTAS

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

arquivos

Novembro 2024

Outubro 2024

Setembro 2024

Agosto 2024

Junho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub