Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Terça-feira, 2 de Janeiro de 2018
COMEMORAÇÕES

Em 2018 comemora-se o II centenário do nascimento de Karl Marx e os 170 anos da edição dessa obra seminal que foi o Manifesto Comunista. Com tanto tempo passado e depois de tudo o que já se disse sobre Marx, que sentido faz comemorar estas datas?

Para além da constatação óbvia da influência perene das suas ideias, tão eloquentemente expressa pelo filósofo e crítico literário britânico Terry Eagleton, quando refere que “There are no Cartesian governments, Platonist guerrilla fighters or Hegelian trade unions.” (Terry Eagleton, Why Marx was right, New Haven, Yale University Press, 2011, p. X), o que mais surpreende em Marx é a extraordinária modernidade do seu pensamento. Atente-se nas palavras premonitórias pronunciadas num discurso por ocasião do aniversário do People’s Paper, em 1856, em que Marx dirá sobre o seu presente – afinal tão próximo do nosso – “Nos nossos dias tudo parece prenhe do seu contrário. A maquinaria, dotada com o poder maravilhoso de diminuir e frutificar o trabalho humano, mata-o à fome e fá-lo trabalhar em excesso. As novas fontes de riqueza, por algum estranho sortilégio, transformam-se em fontes de escassez. (…) Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar as forças materiais de vida intelectual e embrutecer a vida humana ao torná-la uma força material.” (cit. Jonathan Wolff, Porquê ler Marx hoje?, Lisboa, Cotovia, 2003, pp. 12-13).

Foi esta invulgar capacidade de questionamento da realidade que transformou definitivamente o nosso entendimento da história e das relações sociais. A principal lição de Marx foi brilhantemente sintetizada, uma vez mais, por Terry Eagleton: “A slave knows he is a slave, but knowing why he is a slave is the first step towards not being one.” [itálico meu] (Eagleton 2011: 143). Foi este conhecimento profundo das raízes da exploração humana, foi a sua notável perceção da evolução das sociedades e do funcionamento do capitalismo, que o seu pensamento genial nos transmitiu. Mas simultaneamente foi este precioso legado crítico e esta atitude inconformada que Marx nos deixou. Como nenhum outro. Sobretudo a sua denúncia permanente da “ideologia branca” de que nos fala o filósofo português Sousa Dias. Da ideologia que se quer impercetível, inócua, desideologizada, essa mesma ideologia que conduziu à naturalização do capitalismo, à aceitação passiva de um destino tido por inevitável e incensado pelas narrativas do “fim da história”, à fatalidade daquilo que passa por constituir o derradeiro patamar da marcha da humanidade, doravante condenada per omnia saecula saeculorum a um futuro de injustiça e exploração. Sem escolha.

Pelo contrário, o que os ensinamentos de Marx nos deixaram foram principalmente os seus efeitos mobilizadores na denúncia das iniquidades sociais e na problematização e desmistificação da realidade, entendimento que não pode deixar de se traduzir numa postura contestatária e desafiadora face à ordem existente e à visão do mundo hegemónica. E, dada a natureza eminentemente revolucionária do pensamento marxista, desde essa altura desvalorizado e desprezado, discriminado e ostracizado, perseguido e, quantas vezes, eliminado, numa escala crescente de ódio por parte das forças dominantes, na exata medida do grau de resistência e eficácia na luta por um outro caminho. É isso que significa ser – hoje, como ontem – marxista: não se conformar, procurar sempre uma alternativa.

As primeiras palavras do Manifesto Comunista, publicado em 1848, lembravam aos poderes instituídos, “Anda um espectro pela Europa – o espectro do Comunismo.” Esse grande ideal civilizacional de Marx, alvo de tantas apropriações espúrias e interpretações abusivas ou truncadas, norteou – norteia – as esperanças de muitos milhões de pessoas em todo o mundo. E, como refere Sousa Dias, “O fracasso, os fracassos, das experiências comunistas, longe de significarem o fracasso da Ideia comunista, fazem parte da Ideia, do seu estatuto «hipotético» ou «problemático», constituem o seu campo necessário de experimentação, de tentativas, de renovação, de erro e de autocorreção.” (Sousa Dias, Grandeza de Marx, Lisboa, Assírio & Alvim, 2011, p. 19). E por isso, no seguimento do que sublinha o filósofo esloveno Slavoj Zizek, “permanecer hoje fiel a essa Ideia, permanecer fiel a Marx, não faz sentido senão na forma de uma espécie de infidelidade, de um certo e assumido antimarxismo, de um abandono absoluto da Ideia de comunismo legada pelos séculos XIX e XX”, infidelidade essa que “é tão-só a condição negativa necessária e a própria forma de atualidade de uma fidelidade fundamental” (Dias, op. cit., p. 21), tanto mais indispensável, quanto maiores são as disfuncionalidades do capitalismo globalizado, tanto em termos do agravamento brutal das desigualdades sociais, como de uma espécie de irracionalidade suicida indutora de uma catástrofe ambiental iminente.

Para Sousa Dias, “A questão-Marx, a questão da atualidade de Marx, por conseguinte não será tanto, ou não será de todo, e para retomar ainda a fórmula zizekiana, a de saber o que devemos pensar de Marx mas a de saber o que Marx pensaria, poderia pensar, de nós. Não será tanto a da crítica da Ideia comunista pela realidade contemporânea como a da crítica desta realidade na perspetiva da Ideia de Marx.” (Dias, op. cit., p. 22). Trata-se, com efeito, “Não de um regresso a Marx (…), mas de um regresso de Marx. (…) Sua vinda, não do passado mas do futuro, convocado pela realidade presente.” (Dias, op. cit., p. 71). Imperativo que significa assumir em toda a sua plenitude a posição certeira do filósofo francês Daniel Bensaïd: “penser avec Marx, contre Marx, pas sans lui”.

De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” (Crítica do Programa de Gotha); que maravilhosa utopia! É da possibilidade, sempre presente, dessa revolução social emancipadora, de uma outra história – a do “reino da liberdade” submetendo finalmente o “reino da necessidade”, isto é, a construção de uma sociedade baseada no desenvolvimento pleno e livre de cada um (de que nos fala Karl Marx em O Capital) – que nos estamos a referir. Dessa mesma possibilidade que, de forma notável, Oscar Niemeyer expressou acerca da arquitetura moderna: a de que é preciso “criar hoje o passado de amanhã”. Que assim seja!


Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 19:31
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Fevereiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

12
13
14
15
16
17

18
19
21
22
23
24

25
26
27
28
29


posts recentes

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

ROLO COMPRESSOR

Reflexão sobre o artigo d...

AS PERGUNTAS

Valorizar os servidores d...

MÍNIMOS

Como será a educação daqu...

EXCESSIVO

DEMOCRACIA

arquivos

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub