Em 2018 comemora-se o II centenário do nascimento de Karl Marx e os 170 anos da edição dessa obra seminal que foi o Manifesto Comunista. Com tanto tempo passado e depois de tudo o que já se disse sobre Marx, que sentido faz comemorar estas datas?
Para além da constatação óbvia da influência perene das suas ideias, tão eloquentemente expressa pelo filósofo e crítico literário britânico Terry Eagleton, quando refere que “There are no Cartesian governments, Platonist guerrilla fighters or Hegelian trade unions.” (Terry Eagleton, Why Marx was right, New Haven, Yale University Press, 2011, p. X), o que mais surpreende em Marx é a extraordinária modernidade do seu pensamento. Atente-se nas palavras premonitórias pronunciadas num discurso por ocasião do aniversário do People’s Paper, em 1856, em que Marx dirá sobre o seu presente – afinal tão próximo do nosso – “Nos nossos dias tudo parece prenhe do seu contrário. A maquinaria, dotada com o poder maravilhoso de diminuir e frutificar o trabalho humano, mata-o à fome e fá-lo trabalhar em excesso. As novas fontes de riqueza, por algum estranho sortilégio, transformam-se em fontes de escassez. (…) Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar as forças materiais de vida intelectual e embrutecer a vida humana ao torná-la uma força material.” (cit. Jonathan Wolff, Porquê ler Marx hoje?, Lisboa, Cotovia, 2003, pp. 12-13).
Foi esta invulgar capacidade de questionamento da realidade que transformou definitivamente o nosso entendimento da história e das relações sociais. A principal lição de Marx foi brilhantemente sintetizada, uma vez mais, por Terry Eagleton: “A slave knows he is a slave, but knowing why he is a slave is the first step towards not being one.” [itálico meu] (Eagleton 2011: 143). Foi este conhecimento profundo das raízes da exploração humana, foi a sua notável perceção da evolução das sociedades e do funcionamento do capitalismo, que o seu pensamento genial nos transmitiu. Mas simultaneamente foi este precioso legado crítico e esta atitude inconformada que Marx nos deixou. Como nenhum outro. Sobretudo a sua denúncia permanente da “ideologia branca” de que nos fala o filósofo português Sousa Dias. Da ideologia que se quer impercetível, inócua, desideologizada, essa mesma ideologia que conduziu à naturalização do capitalismo, à aceitação passiva de um destino tido por inevitável e incensado pelas narrativas do “fim da história”, à fatalidade daquilo que passa por constituir o derradeiro patamar da marcha da humanidade, doravante condenada per omnia saecula saeculorum a um futuro de injustiça e exploração. Sem escolha.
Pelo contrário, o que os ensinamentos de Marx nos deixaram foram principalmente os seus efeitos mobilizadores na denúncia das iniquidades sociais e na problematização e desmistificação da realidade, entendimento que não pode deixar de se traduzir numa postura contestatária e desafiadora face à ordem existente e à visão do mundo hegemónica. E, dada a natureza eminentemente revolucionária do pensamento marxista, desde essa altura desvalorizado e desprezado, discriminado e ostracizado, perseguido e, quantas vezes, eliminado, numa escala crescente de ódio por parte das forças dominantes, na exata medida do grau de resistência e eficácia na luta por um outro caminho. É isso que significa ser – hoje, como ontem – marxista: não se conformar, procurar sempre uma alternativa.
As primeiras palavras do Manifesto Comunista, publicado em 1848, lembravam aos poderes instituídos, “Anda um espectro pela Europa – o espectro do Comunismo.” Esse grande ideal civilizacional de Marx, alvo de tantas apropriações espúrias e interpretações abusivas ou truncadas, norteou – norteia – as esperanças de muitos milhões de pessoas em todo o mundo. E, como refere Sousa Dias, “O fracasso, os fracassos, das experiências comunistas, longe de significarem o fracasso da Ideia comunista, fazem parte da Ideia, do seu estatuto «hipotético» ou «problemático», constituem o seu campo necessário de experimentação, de tentativas, de renovação, de erro e de autocorreção.” (Sousa Dias, Grandeza de Marx, Lisboa, Assírio & Alvim, 2011, p. 19). E por isso, no seguimento do que sublinha o filósofo esloveno Slavoj Zizek, “permanecer hoje fiel a essa Ideia, permanecer fiel a Marx, não faz sentido senão na forma de uma espécie de infidelidade, de um certo e assumido antimarxismo, de um abandono absoluto da Ideia de comunismo legada pelos séculos XIX e XX”, infidelidade essa que “é tão-só a condição negativa necessária e a própria forma de atualidade de uma fidelidade fundamental” (Dias, op. cit., p. 21), tanto mais indispensável, quanto maiores são as disfuncionalidades do capitalismo globalizado, tanto em termos do agravamento brutal das desigualdades sociais, como de uma espécie de irracionalidade suicida indutora de uma catástrofe ambiental iminente.
Para Sousa Dias, “A questão-Marx, a questão da atualidade de Marx, por conseguinte não será tanto, ou não será de todo, e para retomar ainda a fórmula zizekiana, a de saber o que devemos pensar de Marx mas a de saber o que Marx pensaria, poderia pensar, de nós. Não será tanto a da crítica da Ideia comunista pela realidade contemporânea como a da crítica desta realidade na perspetiva da Ideia de Marx.” (Dias, op. cit., p. 22). Trata-se, com efeito, “Não de um regresso a Marx (…), mas de um regresso de Marx. (…) Sua vinda, não do passado mas do futuro, convocado pela realidade presente.” (Dias, op. cit., p. 71). Imperativo que significa assumir em toda a sua plenitude a posição certeira do filósofo francês Daniel Bensaïd: “penser avec Marx, contre Marx, pas sans lui”.
“De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” (Crítica do Programa de Gotha); que maravilhosa utopia! É da possibilidade, sempre presente, dessa revolução social emancipadora, de uma outra história – a do “reino da liberdade” submetendo finalmente o “reino da necessidade”, isto é, a construção de uma sociedade baseada no desenvolvimento pleno e livre de cada um (de que nos fala Karl Marx em O Capital) – que nos estamos a referir. Dessa mesma possibilidade que, de forma notável, Oscar Niemeyer expressou acerca da arquitetura moderna: a de que é preciso “criar hoje o passado de amanhã”. Que assim seja!
Hugo Fernandez