Este título, tomado de empréstimo da canção homónima do álbum Pré-Histórias de Sérgio Godinho, é bem o retrato de uma forma muito particular de fazer política, própria daqueles que pretendem escamotear o que é indisfarçável.
Não é nova esta maneira de fazer política. Radica naquilo que, no final dos anos setenta do século passado, o jurista e politólogo francês Roger-Gérard Schwartzenberg denominou “o Estado espetáculo”, parafraseando o conceito de “sociedade espetáculo” que um seu conterrâneo, o filósofo Guy Debord, tinha teorizado na década anterior. Trata-se de constatar, nas palavras introdutórias de Schwartzenberg, a singular circunstância de que “A política, outrora, era ideias. Hoje, é pessoas. Ou melhor, personagens. Pois cada dirigente parece escolher um emprego e desempenhar um papel. Como num espetáculo.” (Roger-Gérard Schwartzenberg, O Estado espetáculo, São Paulo, Difel, 1978, p. 1). Nesta passagem de um poder político abstratizado e essencialmente adstrito às grandes construções jurídico-constitucionais (e, afinal, não era precisamente a apologia do anonimato que imperava nos alvores da democracia?) para uma “política figurativa” em que prevalece uma “encenação” de que o próprio Estado se encarrega de ser “produtor”, assiste-se a um processo de personalização do poder que, mais do que efetivo domínio institucional – como no caso das ditaduras – representa, em termos da psicologia coletiva, a encarnação da nação – como, mais uma vez, no caso das ditaduras, mas também no de algumas democracias.
Esta personalização do poder engendra dois tipos de consequências: por um lado, conduz a uma exaltação, o mais das vezes exagerada e descabida, do dirigente político em questão, transformando-o em algo maior do que realmente é (e merece!), fazendo-o portador de virtudes e qualidades que, de facto, não possui, ou que possui, mas não num grau tão superlativo. Por outro lado, pode ser particularmente enganadora, quando corresponde a um processo de ocultação de poderes fácticos que, agindo na sombra, se servem destes protagonistas para satisfazer os seus interesses. Em qualquer das situações, é pelo fascínio causado nas populações – o poder carismático de que falava Max Weber – que estes indivíduos fazem o seu percurso político e exercem o seu consulado governativo. Reinventando-se, estes indivíduos compõem uma personagem (no sentido latino de persona, enquanto máscara teatral), adotando posturas, comportamentos, valores e crenças que melhor satisfaçam os seus desígnios, tendo por finalidade, tão eloquentemente proclamada por Benito Mussolini, de “fazer da própria vida uma obra-prima”.
Desde há umas décadas, são os mass media que constituem o veículo privilegiado ao serviço desta autêntica “egopolítica”. Mostrar-se e ser visto pelo maior número possível de pessoas passou a ser a conditio sine qua non da atuação política e da influência pessoal. A comunicação ultrapersonalizada, eminentemente emocional e afetiva, relega para segundo plano precisões concetuais mais elaboradas e uma verdadeira análise das situações. O sound-bite e o imediatismo da mensagem televisionada ou radiodifundida substituem a reflexão, necessariamente ponderada e diferida no tempo. Procura-se o efeito fácil, o gesto espetacular, a afirmação singular, o vedetismo do momento – que se transforma num constante “espetáculo do poder” – em detrimento do trabalho reflexivo, da discussão de ideias, da resolução responsável dos problemas. Como referia o conhecido sociólogo canadiano Marshall MacLuhan nos estudos – já clássicos – elaborados sobre este tema nos finais dos anos sessenta do século passado, “a mensagem é o meio”.
Ora, a mediatização da política ultrapersonalizada induz o efeito profundamente artificial da proximidade, da empatia, da comunhão de interesses e expetativas, da partilha de um destino comum. Nada mais demagógico. O “telepolítico”, longe de desejar a participação popular – e muito menos o confronto de posições que essa participação poderia suscitar – marca a sua distância real face aos governados precisamente através da ilusão do unanimismo, da harmonia nacional, do bem-estar comunitário. A distância entre a imagem difundida e a realidade das circunstâncias é a garantia da eficácia deste tipo de ação política, ao produzir uma espécie de humanização do exercício do poder, segundo o princípio, cristalinamente enunciado por Nicolau Maquiavel na sua famosa obra O Príncipe, “O vulgo só julga aquilo que vê”.
Como diz Schwartzenberg, “Para o telepolítico, não se trata de argumentar, sustentar, tentar convencer o espetador. Seguindo um caminho racional. Trata-se antes de suscitar emoções, de fazer brotar um impulso, um sentimento de confiança a seu favor. Dirigindo-se ao instinto – tão facilmente iludido – mais que à razão; aos sentidos, mais que à consciência.” (Schwartzenberg, 1978: 205). Aduz dois exemplos, oriundos dos EUA, que são suficientemente elucidativos. Em 1968, aquando da campanha eleitoral que vai eleger Richard Nixon, o seu campaign manager, Ray Price, entrega a Nixon a seguinte mensagem: “O eleitor reage à imagem do candidato e não ao homem, com o qual 99% da população jamais teve e jamais terá qualquer contato direto. O que vale não é o que existe, e sim o que é projetado… Não precisamos portanto mudar o homem, mas sim a imagem recebida” [itálicos no original]. Por seu lado, o speechwriter de Nixon, William Gavin, será ainda mais explícito: “O eleitor é fundamentalmente preguiçoso e em hipótese alguma se poderá esperar que ele faça o menor esforço para compreender o que lhe dizem. Raciocinar exige um grau elevado de disciplina e concentração; é mais fácil impressionar. O raciocínio repugna ao telespetador, ou então o agride, exige que ele concorde ou recuse; uma impressão, pelo contrário, pode envolvê-lo, solicitá-lo sem o colocar diante de uma exigência intelectual”.
A vedetização e a dramatização constituem, assim, instrumentos essenciais do processo de encenação política. A exploração televisiva da atuação governativa transforma tudo numa espécie de reality show. O “telepolítico” vale-se da ilusão da familiaridade e adota uma afetividade largamente fictícia (excedendo, em todo o caso, eventuais traços genuínos de caráter), reforçando a imagem de uma figura paternal que procura parecer próximo das pessoas, compreender mais do que afirmar, seduzir mais do que convencer. Toda esta intimidade desarma, anestesia, endeusa. E, lançando-se numa autêntica “tournée de abraços” – na sugestiva expressão da jornalista Fernanda Câncio (Público, 23/10/2017) – o “egopolítico” promove a adesão unanime e inconsiderada. Como diz Schwartzenberg, “Desta maneira, o cidadão vive e se valoriza, recupera sua dignidade. Por herói interposto.” (Schwartzenberg, 1978: 252).
Tudo, porém, faz parte do espetáculo de um poder personalizado e de uma gestão política rigorosamente pensada; tudo concorre para o reforço da ambição pessoal e da prossecução inconfessada de determinados propósitos. O problema é que acaba sempre por aparecer uma vichyssoise no caminho a denunciar o logro.
Hugo Fernandez