Quando Nuno Magalhães, líder parlamentar do CDS, para justificar a moção de censura ao Governo por causa dos incêndios florestais, afirmou “Cabe ao PCP, PS e BE avaliarem se houve ou não falhas e se a morte de cem pessoas é grave.”, está tudo dito sobre o oportunismo político da iniciativa e a suprema hipocrisia daqueles que, mesmo tendo tido responsabilidades diretas no setor, nunca quiseram saber dos males que afetavam a floresta e de que resultaram – a par de uma inenarrável incompetência e falta de meios no seu combate (pese embora uma situação de extrema atipicidade climática) – as tragédias invocadas. Recorde-se, a título de exemplo, a extinção, pela então Ministra da Agricultura e atual dirigente do CDS, Assunção Cristas, precisamente da Secretaria de Estado das Florestas e da Autoridade Florestal Nacional, organismos que tutelavam a gestão e defesa da floresta e que procuravam garantir condições tão essenciais como a limpeza dos matos, o ordenamento florestal, a vigilância contra incêndios, etc. Bem como a redução, pela mão de Cristas, de dois terços dos funcionários do ministério da Agricultura, precisamente daqueles que estavam no terreno, junto das populações (como aconteceu, de resto, com a extinção dos guardas florestais). Ou, para o efeito, da liberalização da plantação de eucaliptos, apadrinhada pelo seu ministério.
A impostura é tanto maior quanto os partidos que agora censuram o Governo, CDS e PSD, têm sido defensores e promotores estrénuos precisamente das políticas de “litoralização inexorável” de que falava Miguel Portas (E o resto é paisagem, Lisboa, Dom Quixote, 2002, p. 21), oscilando entre a voragem urbanizadora, o deslumbramento terciário ou a simples rapina de um território transformado em autêntica coutada de caça. Referimo-nos ao desaparecimento, induzido em larga escala, de todo o tipo de atividades económicas e oportunidades de emprego, nomeadamente pelo encerramento sistemático dos serviços públicos (escolas, centros de saúde, estações de correio, bancos, transportes, até serviços de finanças) que, não permitindo a fixação das populações nas suas localidades, fomentaram uma alarmante desertificação humana das regiões do interior e o subsequente abandono das terras, doravante pasto fácil da fúria incendiária. Não sejamos ingénuos; foi este deslaçar das comunidades rurais, subsumidas aos propósitos predadores da indústria extrativa – por exemplo, com a expansão incontrolada de monoculturas tão lesivas para o ordenamento do território e para o ambiente quanto sumamente rentáveis para os interesses privados de uns poucos – e da especulação imobiliária desenfreada – pela venda de enormes parcelas do território a interesses exógenos, quantas vezes estrangeiros – que fez a fortuna de muita da clientela desses mesmos partidos que agora choram “lágrimas de crocodilo”.
O diagnóstico certeiro de José Pacheco Pereira, não deixa dúvidas: “um dos aspetos que mais aceleraram a devastação do interior foi o processo de privatizações conduzido pelo Governo Passos-Portas que implicava um conjunto de obrigações de caráter nacional, em que umas ficaram no papel e outras não, apenas entregues à boa vontade das novas empresas privadas.” (Público, 28/10/2017). Trata-se, para além da deterioração generalizada dos serviços contratados, das pequenas – afinal, grandes! – necessidades de manutenção dos espaços, da limpeza dos locais de passagem das linhas de energia, do contacto diário com as populações, da possibilidade de ajuda próxima, do conhecimento do terreno que grandes empresas como os CTT, a EDP ou a REN, pura e simplesmente, deixaram de prestar, ajuramentadas que estão ao sacrossanto lema do “lucro máximo com o custo mínimo”.
Inverter estas políticas é uma necessidade. Entre a miserável e folclórica ruralidade salazarista e a obsessão urbanocrata da modernidade neoliberal, há de haver, com certeza, outros caminhos. Como disse o economista José Reis, “Estes fogos apenas descarnaram o país esquelético que fomos criando. Mataram os mais indefesos.” (Público, 20/10/2017). Para o professor catedrático coimbrão, temos que “Esquadrinhar o território onde crescem árvores e arbustos com a mesma força com que se esquadrinhou o campo para os loteamentos urbanos. (…) Mas é preciso querer. Querer mudar o país todo, do qual temos andado distraídos.” Criar condições para que as populações (nomeadamente as mais jovens) possam permanecer nos seus locais de origem, rejeitar as monoculturas (por exemplo de eucalipto e pinheiro), incentivar uma agricultura sustentável (ambiental e economicamente), promover um verdadeiro ordenamento do território, transferir recursos (humanos e materiais), conhecimentos, tecnologia para esse “outro lado” do país, são urgências nacionais.
Porque, como bem explicou Eduardo Lourenço, “Portugal é um tecido histórico-social de malha cerrada, uma aldeia de todos, uma parentela com oito ou mais séculos de coabitação, uma árvore genealógica comum” (Eduardo Lourenço, Nós e a Europa, ou as duas razões, Lisboa, INCM, 1988, p. 13). Este país escreve-se no singular; é pequeno demais para ser assimétrico. Não faz sentido falar de um litoral e de um interior. Se os responsáveis políticos compreenderem esta urgência, serão muito mais estadistas do que tem revelado o deplorável espetáculo da beijoquice pública.
Hugo Fernandez