Podemos continuar a resignar-nos com votações que pouco excedem a metade dos eleitores? Podemos ser complacentes com um sistema político que aceita a demissão cívica reiterada de uma parte substancial da população, expressa em elevados índices de abstenção? Seja qual for a perspetiva pela qual se encare o problema, esta circunstância diz-nos mais sobre a qualidade da democracia em que vivemos do que sobre quaisquer aspetos conjunturais e perfeitamente aleatórios da maior ou menor empatia entre eleitos e eleitores. Trata-se, com efeito, de uma marca indelével da nossa ordenação política, acerca da qual permanece um silêncio cúmplice e uma anuência dificilmente compreensíveis.
Talvez a razão de semelhante desacerto se prenda com a tese defendida pelo politólogo norte-americano Jason Brennan que, na desassombrada entrevista dada à revista Visão no passado mês de setembro, nos revela aquele que considera ser o principal defeito do sistema democrático. Para este professor de Ciência Política da Universidade de Georgetown, em Washington, “Quando obrigamos todos os cidadãos a ir votar, estamos a inundar as urnas com os eleitores menos informados e ignorantes. E isso não é bom. Do mesmo modo que não queremos pôr os bêbados a conduzir, também não queremos pôr os ignorantes a votar.” (Visão, 28/9/2017). Dividindo o universo de potenciais eleitores em “pessoas preconceituosas [no sentido de sectárias] altamente motivadas e pessoas ignorantes e desmotivadas.”, Brennan advoga uma democracia restrita, “Porque, ao contrário do que é habitual dizer-se, o voto obrigatório não traz grandes benefícios. Não precisamos que toda a gente vá votar, há maneiras mais baratas de o fazer, basta selecionar 20 mil pessoas, não é preciso forçar 10 milhões ou 210 milhões, como acontece nos Estados Unidos da América, a ir votar.”. Defendendo um “sufrágio universal com veto epistocrático.” [uma espécie de conselho dos sábios ou “aristocracia do conhecimento”, também apelidada de “sofocracia” ou “noocracia” (cf. Giovanni Sartori, Teoria de la democracia, Madrid, Alianza Universidad, 1997, p. 335], o académico americano faz uma surpreendente e provocante analogia acerca do funcionamento da democracia: “é como se, de quatro em quatro anos, os cidadãos fossem fazer um exame e, no final, tivessem que dividir a nota com todos os outros cidadãos desse país.”
Para além das ressonâncias platónicas de semelhante sistema, com o claro absurdo do referido conselho de sábios dever ser constituído por “cidadãos com fortes conhecimentos de sociologia e de filosofia política”, como refere Brennan, a sua proposta tende a esquecer toda a história da implementação dos sistemas democráticos modernos e da dura luta dos povos por um progressivo alargamento da capacidade eleitoral, como parte integrante de um processo civilizacional de universalização do direito à cidadania e de promoção da justiça social. Mas, por mais anacrónica que nos possa parecer a visão do politólogo norte-americano, o estado a que chegaram as democracias no mundo contemporâneo parece estar, paradoxalmente, a confirmar as suas asserções. Não pela necessidade da indução de quaisquer limitações cívicas – o que contrariaria os princípios legais e doutrinários amplamente aceites a nível planetário – mas por propósitos de caráter eminentemente político. Até que ponto não é do interesse do próprio sistema democrático uma redução da participação eleitoral para níveis que assegurem não só uma melhor gestão das expetativas, como uma maior eficácia governativa na satisfação de determinados interesses?
Quando, na Proclamação de Gettysburg de 1861, Abraham Lincoln enunciou a célebre definição da democracia como o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, não estava a contar a história toda. É certo que as eleições representam a expressão cimeira da glorificada “soberania popular”, a partir do princípio doutrinário da isonomia – igualdade de condição perante a lei (mas, em todo o caso, nunca da isocracia, entendida enquanto “poder igual”). E que a possibilidade de mudar periodicamente os detentores do poder político, dá à população uma capacidade ímpar de influenciar a governação da res publica. Mas a relação que assim se estabelece entre governantes e governados tem outras condicionantes. É que verdadeiramente não é o povo que decide; escolhe quem tem a atribuição de decidir. Claro que os políticos no poder terão sempre que antecipar as reações do eleitorado à sua atuação governativa, para garantirem posteriores reeleições. Mas, no sistema democrático vigente, é neste procedimento eleitoral formalmente livre e exercido em condições perfeitamente padronizadas que se resume a participação cívica da esmagadora maioria da população, pouco empenhada em qualquer tipo de envolvimento político, partidário, associativo ou comunitário.
O propósito das eleições passa, desta forma, cada vez menos por uma preocupação com o aprofundamento da democracia, entendida enquanto mobilização efetiva das pessoas no sentido de uma intervenção cidadã progressivamente mais regular. O principal desiderato a cumprir com a consulta periódica dos cidadãos prende-se, pelo contrário e cada vez mais, com a efetivação de um mecanismo expedito de escolha e legitimação dos governantes, baseando-se em premissas meramente procedimentais e de caráter quantitativo (a constituição de maiorias circunstanciais). A participação ativa dos cidadãos na vida democrática é claramente negligenciada, quando não abertamente desencorajada. A permanente despolitização e alienação cívica das populações – processo no qual os órgãos de comunicação social, em especial a televisão, desempenham um papel essencial – são realidades bem mais frequentes do que se quer fazer crer, acabando por reduzir a política à satisfação dos interesses de grupos restritos, bem organizados e influentes. É que, como referia já há uns anos o sociólogo britânico Paul Hirst, “A participação limitada é uma característica institucional da democracia de massa e não uma mera falha decorrente de circunstâncias específicas.” (Paul Hirst, A democracia representativa e seus limites, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993, p. 10).
Hugo Fernandez