Em finais de abril, passaram os primeiros 100 dias da governação Trump. E se a ação da atual Administração americana é um tema recorrente de análise e preocupação globais, esta espécie de obsessão indicia uma compreensão precisa do que o trumpismo representa em termos americanos e das suas consequências a nível mundial. Longe de ser um epifenómeno, “Tudo é interessante no «momento» Trump. Quase tudo é perigoso em Trump. Nada vai ficar igual com ele e nada vai ficar igual depois dele. Quase tudo muda com ele.”, como refere o historiador José Pacheco Pereira (Público, 25/3/2017). Ora, um dos traços característicos do poder instalado na Casa Branca é o da manipulação e uso constante da mentira ao serviço da prepotência e do nepotismo.
Caracterizando-o como “o Presidente da «nova ignorância» […], um misto de troll, de figurante de um reality show especialmente bully, um artista de variedades e um con man, um vigarista.”, Pacheco Pereira refere que a mentira a que constantemente recorre é nele sistémica e não uma qualquer disfunção patológica. Trump e os “seus” põem a verdade ao serviço da convicção e de um poder que se quer incontestável e absoluto, “uma revolução autocrática, feita à volta de um homem sem qualidades”, concluindo, “Todos os dias há uma ameaça, todos os dias há uma decisão associada a uma ameaça. E é essa exibição de motivos e de explicações que é autocrática, porque sem grandes subtilezas revelam um homem disposto a tudo para impor a sua vontade, a começar pelas regras escritas e não escritas da democracia.” (Público, 13/5/2017).
Ao 99º dia da sua presidência, Trump confessou numa entrevista à Reuters, “Pensava que isto ia ser mais fácil. Aqui tenho muito mais trabalho do que tinha antes”, queixando-se que nunca antes um Presidente dos EUA tinha sido tão maltratado quanto ele. Mas o seu estilo de governo por decreto executivo (em 100 dias, assinou mais de 30), sem a busca de qualquer negociação ou consenso legislativo junto do Congresso ou do Senado, são bem elucidativos do despotismo desta governação. Tal como a comunicação direta que estabelece com o seu país e o mundo através do Twitter, prescindindo dos meios de comunicação tradicionais, que acusa de serem mentirosos e incorretos – “o inimigo”, como os classificou o seu conselheiro Steve Bannon. A corte de adoradores e de oportunistas que aproveitam o desvario desta personalidade medíocre e doentia, aplaude.
Como justamente refere o jornalista Alexandre Martins, “Trump não tem apoiantes: tem adeptos. E dos ferrenhos – que não viam a sua equipa ganhar desde que nasceram (e já nasceram há muitos anos). Para muitos, a eleição de Trump não foi uma vitória – foi uma vingança.” (Público, 29/4/2017). Uma vingança de cariz populista, nacionalista, segregacionista, xenófoba e racista. A promessa de Trump é que a sua administração terá “sucessos tremendos”. É aqui que entra a manipulação comunicacional. A começar pela gigantesca falácia com que se apresentou ao eleitorado, como o paladino dos mais fracos e desprotegidos contra os ditames da finança e da globalização, contestando o sistema instalado e os interesses obscuros do poder de Washington. Ora se há alguém que sempre simbolizou os proveitos multimilionários da mais extremada exploração capitalista, que sempre pautou a sua ação pela total falta de escrúpulos e de consideração para com os outros (e, em primeiro lugar, para com os mais desfavorecidos), que na sua arrogância egocêntrica quebrou todas as regras e engendrou os esquemas mais extraordinários para uma afirmação pessoal exacerbada, essa personagem é, sem dúvida, Donald Trump. Assessorado pelos familiares, são os seus negócios particulares que continuam a ser administrados a partir da Casa Branca, com óbvias e acrescidas vantagens. Em termos de interesses obscuros do poder, estamos conversados. E, em jeito hamletiano, podemos seguramente dizer que “há mais coisas entre o céu e a terra do que sabemos”.
O Nobel da Economia em 2008, Paul Krugman, atribui o sugestivo título “Os factos são inimigos do povo” ao seu artigo de opinião publicado na Visão (16/3/2017), dando um exemplo suficientemente esclarecedor desta paranoia no uso da mentira enquanto instrumento privilegiado de inculcação doutrinária e de poder discricionário do trumpismo. Durante o segundo mandato de Obama, a taxa oficial de desemprego situou-se abaixo dos 5%, com a economia americana a conseguir criar 10,3 milhões de empregos, ou seja, 214 mil por mês. Apesar desta evolução positiva, comprovada por todos os indicadores, Trump considerava que estas notícias eram “treta”, insistindo na tese do desemprego em massa e num cenário de catástrofe social – argumentos, de resto, amplamente divulgados e com os quais conseguiu convencer largas camadas da população e acabar por vencer a corrida à Casa Branca. Quando recentemente foi conhecido o primeiro relatório da Administração Trump referente ao emprego, a mesma tendência mantinha-se. Perante tais resultados, não só Trump chamou a si os louros dos números existentes, como o seu diligente secretário de imprensa, Sean Spicer, se apressou a declarar “podem ter sido treta no passado, mas são muito reais hoje”. Esta é a mesma desfaçatez e desonestidade intelectual das inúmeras declarações falsas de Trump, como a da sua tomada de posse ter tido a maior assistência de sempre ou que houve milhões de votos contabilizados ilegalmente a favor de Hillary Clinton. Krugman conclui: “Os repórteres riram-se – e deviam ter vergonha de se terem rido. Porque não foi uma piada. Os EUA são hoje governados por um Presidente e um partido que no fundamental não aceitam a ideia de que há factos objetivos. Em vez disso, querem que toda a gente aceite que a realidade é o que eles disserem que é.” Ou seja, o princípio do poder ditatorial em todo o seu esplendor!
Outro exemplo particularmente elucidativo são as imputações de espionagem que faz ao seu antecessor. No início de março, Donald Trump twittou mensagens a acusar Barack Obama de lhe ter instalado escutas nos últimos dias da campanha eleitoral: “Terrível! Acabo de descobrir que Obama me pôs sob escuta na Trump Tower mesmo antes da vitória.” Estas alegações extremamente graves foram prontamente desmentidas por Jason Chaffetz, o congressista republicano que lidera a Comissão de Supervisão da Câmara de Representantes, o mais importante órgão de investigação do Congresso norte-americano, que revelou não ter quaisquer provas de que tal tenha acontecido. No mesmo sentido, o então diretor do FBI, James Comey, solicitou ao Departamento de Justiça para rejeitar, de forma oficial, as acusações feitas por Donald Trump, pois eram comprovadamente falsas e deveriam ser retiradas. Pelo contrário, o que os serviços secretos norte-americanos têm reiteradamente vindo a constatar são informações que apontam para ligações entre membros da equipa de Trump e o regime de Vladimir Putin, suspeito, desde o início, de ter interferido nas eleições que levaram o magnata americano ao poder. Foi certamente pelo avolumar destes indícios que Trump despediu James Comey da direção do FBI, tal como já tinha afastado liminarmente a procuradora geral interina Sally Yates quando esta avisou a Casa Branca das ligações de Michael Flynn – o indigitado conselheiro nacional de segurança de Trump, recorde-se – aos interesses russos (que acabou por ser afastado sob pretexto pueril de ter omitido essas ligações a Mike Pence, o vice-presidente americano).
Alimentando-se dos “factos alternativos”, expressão que a solicita conselheira para a imprensa da Administração Trump, Kellyanne Conway, inventou para encobrir a mais descarada mentira acerca do delirante massacre de Bowling Green – supostamente perpetrado por dois iraquianos e que, de facto, nunca aconteceu –, exacerba-se a retórica maniqueia do amigo-inimigo, aquela mesma que o jurista germânico de simpatias nazis, Carl Schmitt, teorizou nos finais dos anos 20 do século passado. Rejeitada qualquer informação vinda dos que são considerados “inimigos”, isto é, de todos aqueles que não estão de acordo com as suas ideias – incluindo a maior parte dos órgãos de comunicação social norte-americanos –, Trump e os seus apoiantes alimentam-se em exclusividade das informações em que acreditam e que apenas servem para confirmar crenças adquiridas, independentemente da sua veracidade, numa permanente – e militante – manipulação da realidade que configura um universo ideológico autocentrado, próprio das lógicas totalitárias.
O comportamento do Presidente e da sua Administração perante os meios informativos, é, de resto, esclarecedor. Desde as conferências de imprensa em que Trump decide quem pode e quem não pode falar (proibição que inclui a incontornável CNN), até aos briefings de imprensa na Casa Branca, em que os principais órgãos noticiosos, como a prestigiada agência Associated Press, costumavam ter a primazia nas intervenções e que agora são propositadamente relegados para segundo plano (e para uma altura em que já não há tempo para as respostas solicitadas), preteridos em favor de obscuros tabloides pró-Trump como o New York Post, Washington Examiner, National Review ou LifeZette, , sítios web como o Breitbart News, Townhall, Gateway Pundit, Infowars ou The Daily Caller, ou canais televisivos como a Fox News ou a One America News (cf. Le Courrier International, ed. port., maio de 2017).
Com Trump, passamos, com efeito, a outro patamar de manipulação; é que, segundo Paul Krugman, “Nenhum erro é admitido. E não há nunca nada de que pedir desculpas.” (Visão, 6/4/2017). O economista norte-americano explica que “Esta Administração opera com base na doutrina da infalibilidade de Trump: nada que o Presidente diga está errado, quer seja a sua falsa alegação de que ganhou o voto popular ou a sua asserção de que a taxa de homicídios, historicamente baixa, é uma taxa recorde.” Sublinhando “a incapacidade patológica de Trump para aceitar responsabilidades”, Krugman refere, em relação ao Presidente e ao seu círculo próximo, que “Admitir um erro marcá-los-ia como vencidos e fá-los-ia parecer pequeninos. Na realidade, a incapacidade para refletir e fazer autocrítica é a marca de uma alma pequena – mas eles não são suficientemente grandes para ter noção disso.”
A este propósito, não podemos deixar de nos lembrar das palavras do ministro da propaganda nazi Joseph Goebbels sobre a sistemática utilização da mentira pelo regime nacional-socialista, num discurso proferido a 10 de setembro de 1936: “a mentira desconcerta os homens honestos e amigos da verdade, de forma a incapacitá-los para a resistência interior… O mentiroso especula com o facto de o homem amante da verdade não poder sequer imaginar que se possa mentir assim, com a ousada e insolente naturalidade com que ele o faz” (cit. em Vicente Romano, A Intoxicação Linguística, Porto, Deriva, 2008, p. 58). Sabe-se também que a técnica de distorção da verdade mais utilizada pelo regime nazi enquadrava-se no que se pode designar por “mentira afirmativa”, de que são exemplos declarações como “Nós dizemos a verdade”, “Nós temos o verdadeiro socialismo”, “Salvámos a Alemanha do bolchevismo”, “Nós queremos a paz autêntica” ou “Libertámos os operários alemães” (op. cit., p. 58), justificando a invasão da Polónia em 1939 – que deu início à II Guerra Mundial – com a alegada defesa contra uma agressão externa inexistente. A analogia assusta, não é?
Na sua perplexidade, o humorista Ricardo Araújo Pereira confessa, “Acredito que os americanos tenham ido à Lua. Ainda tenho dúvidas que tenham eleito Donald Trump.” (Visão, 4/5/2017). Nós também!
Hugo Fernandez