Este texto é escrito propositadamente antes da segunda volta das eleições francesas. Não porque os resultados sejam indiferentes, mas porque independentemente do desfecho deste sufrágio, há ilações que se podem e devem, desde já, tirar. Se o facto de Marine Le Pen ter obtido 21% dos votos na primeira volta (e chegar à segunda etapa desta eleição, quinze anos depois de seu pai, Jean-Marie Le Pen, ter conseguido o mesmo feito, defrontando o posterior vencedor Jacques Chirac), constitui uma prova concludente da degenerescência de qualquer ideal civilizacional – europeu, ou outro! – a circunstância de Emmanuel Macron ter alcançado 24% dos sufrágios e ser o mais que provável vencedor do escrutínio gaulês, demonstra bem a patologia de que padece a atual União Europeia. Apresentando um sintoma claro – a descrença – esta doença tem um nome bem conhecido: défice democrático.
A desconfiança face às elites que delinearam, de forma arrogante e autossuficiente, este projeto europeu – de que a decadência dos chamados “partidos tradicionais” é um sinal inequívoco – é por demais evidente (basta pensar que cerca de 40% dos eleitores franceses acabaram de votar contra a atual ordem comunitária). Portador do velho e gasto discurso do “não ser de esquerda nem de direita” (uma postura anódina – e, a bem dizer, mistificadora – do nem carne, nem peixe), Macron fez questão de repetir, ao longo da campanha eleitoral, a litania, tão deplorável quanto demagógica, “do otimismo e da esperança para o nosso futuro e para a Europa”. Mas a alternativa que se apresenta é bem menos risonha; a de que a Europa continue mal ou fique ainda pior. Em qualquer dos cenários, são os europeus que perdem sempre. A cada eleição, a Europa comunitária vê-se na contingência, tão bem expressa por José Pacheco Pereira, “de que ganhar é não perder, o que não é brilhante. Vai andar feliz uma semana ou duas e depois tudo começa na mesma.” (Público, 24/4/2017). Daí o comentário certeiro que o diretor do Le Monde Diplomatique, Serge Halimi, faz sobre a situação: “A União Europeia tornou-se indiferente às escolhas democráticas dos seus povos, certa de que as orientações fundamentais dos Estados-membros estavam aferrolhadas por tratados. (…) A União treme agora ao observar cada escrutínio nacional como se neles se jogasse a sua vida.” (Le Monde Diplomatique, ed. port., abril 2017). Porque será?
O défice democrático que tem presidido à construção europeia, pelo menos desde Maastricht (1992), implicou um afastamento radical de qualquer preocupação plebiscitária na legitimação das opções que foram sendo tomadas. Não admira, por isso, que nas poucas oportunidades que as populações tiveram de se pronunciar diretamente sobre as questões europeias, a contestação à atual ordem comunitária tenha sido uma constante: em 1992, os dinamarqueses rejeitaram por 51% o Tratado de Maastricht (texto que acabaria por ser aprovado no ano seguinte, também em referendo, com exceção de quatro cláusulas); em 2000, 53% dos eleitores dinamarqueses votaram contra a entrada na Zona Euro; em 2001, 54% dos irlandeses rejeitaram o Tratado de Nice (que, após todo o tipo de pressões e chantagens sobre a Irlanda acabaria por ser aprovado no ano seguinte); em 2003, 56% dos suecos impedem a adoção do euro no país; em 2005, os franceses dizem “não” ao Tratado Constitucional, com 55% dos votos, rejeição que se vai estender à Holanda, com 61,5% de votos; em 2008, os irlandeses votam 53% contra o Tratado de Lisboa (texto que acabaria por ser aprovado, embora com alterações, no ano seguinte); em 2016, a Holanda rejeita o acordo de Associação entre a União Europeia e a Ucrânia, com 61% de votos; a 23 de junho de 2016, o Reino Unido vota a saída da União Europeia (Brexit), por 52% dos votos. Não foram permitidas mais consultas populares. Como diz o conhecido historiador inglês Perry Anderson, “A partir do momento em que, desprezando os sucessivos referendos, a casta cada vez mais oligárquica da União Europeia foi desprezando a vontade popular e inscrevendo os seus diktats orçamentais na Constituição, não é surpreendente que ela provoque tantos movimentos de contestação, de todo o tipo.”, chamando a atenção para o que entende ser a prevalência de “uma estrutura de autoridade burocrática protegida da vontade popular; como havia previsto e reclamado o economista ultraliberal Friedrich Hayek.” (Le Monde Diplomatique, ed. port., março de 2017).
Francisco Louçã refere, a este propósito, a afirmação em tom irónico que Paulo Portas proferiu recentemente em público: “Quanto mais vejo referendos, primárias e diretas e as suas consequências, mais admiro o método cardinalício: um colégio de 120 pessoas, todos nomeados e nenhum eleito, mas, com a ajuda do Espírito Santo, foram capazes de eleger papas como Wojtyla e Francisco quando foi necessário mudar o mundo.” (Público, 8/4/2017). Explicando que ideias como estas, no fundo, nunca estiveram fora da cogitação dos eurocratas, Louçã lembra como “James Buchanan, prémio Nobel da Economia, explicava numa reunião da Sociedade de Monte Peregrino – o Olimpo dos neoliberais – que «a manutenção da sociedade livre pode bem depender de serem retiradas certas decisões da determinação por voto maioritário», a que acresce a opinião do governador do Banco da Alemanha, Hans Tietmeyer, que preferia o «plebiscito dos mercados” ao das urnas.”, no que, de resto, foi acompanhado pelo seu conterrâneo, o inefável ministro das Finanças, Wolfgang Schaüble, para quem a imposição da política austeritária era independente das opções políticas que legitimamente viessem a ser tomadas em cada país da UE (nomeadamente através de escolhas eleitorais democráticas).
Por seu turno, a jornalista e professora da Universidade de Paris-VIII, Anne-Cécile Robert, denunciando aquilo que considera ser a “arte de ignorar o povo” e que caracteriza como “governança contra democracia”, explica a “reviravolta espetacular” experimentada pelas democracias modernas – de que a Europa passou a ser um autêntico laboratório – em que “já não são os eleitores que escolhem e orientam os eleitos, mas os dirigentes que julgam os cidadãos.” (Le Monde Diplomatique, ed. port., outubro 2016). No momento em que estão a ser decididas questões fundamentais para o futuro coletivo dos europeus, como os poderes monetário e orçamental ou transferências cada vez mais significativas do poder político e da soberania nacionais para Bruxelas, os eurocratas afastam liminarmente a possibilidade dos povos se pronunciarem sobre algo que lhes diz diretamente respeito. Sob a reiterada justificação de que não estão reunidas “condições” para o veredito das urnas, esconde-se a preocupação fundamental com a incerteza dos resultados. E, como refere Anne-Cécile Robert, “Em nenhum momento a classe dirigente pensa que os cidadãos rejeitam os tratados europeus, não por estarem mal informados, mas, pelo contrário, porque retiram lições absolutamente lógicas de uma experiência dececionante de cerca de sessenta anos.”
Diz-se que a Europa respirou de alívio com o resultado das eleições holandesas de março último. Parece que o efeito de contágio dos desvarios populistas estilo Trump foi travado no Velho Continente. Mas que ninguém se iluda. A normalidade que se quer alardear relativamente à solução comunitária é apenas aparente. Porque as enormes disfuncionalidades existentes irão, mais cedo ou mais tarde, provocar graves convulsões. E, como sublinha Perry Anderson, “o futuro da União Europeia depende de tal forma das decisões que a moldaram que já não podemos limitar-nos a reformá-la: temos de sair dela ou de a desfazer, de modo a podermos construir, no seu lugar, algo melhor, assente noutras fundações, o que implica acabar com Maastricht.” O que se exige, pois, é a reinvenção da comunidade europeia. Senão, não.
Hugo Fernandez