Nos escombros da II Guerra Mundial, surgiu a ideia generosa da construção de uma Europa unida e próspera, que permitisse o estabelecimento de relações pacíficas duradouras entre os países europeus (nomeadamente a França e a Alemanha), através de um processo de integração supranacional e a criação de políticas económicas comuns e de um mercado único europeu. O Tratado de Roma de 1957, ao instituir a Comunidade Económica Europeia (futura União Europeia), lançou as bases desta construção, a partir do princípio essencial da solidariedade entre os diferentes países do continente, tendo por base iniciativas consensuais de cooperação. Era isso que constava do preâmbulo deste documento fundador, onde se podia ler “A Comunidade tem como missão, através da criação de um mercado comum e da aproximação progressiva das políticas dos Estados-Membros, promover, em toda a Comunidade, um desenvolvimento harmonioso das atividades económicas, uma expansão contínua e equilibrada, uma maior estabilidade, um rápido aumento do nível de vida e relações mais estreitas entre os Estados que a integram.”, bem como um conjunto de outras disposições que tinham como objetivo assegurar “o progresso económico e social dos seus países eliminando as barreiras que dividem a Europa”, fixar “como objetivo essencial dos seus esforços a melhoria constante das condições de vida e de trabalho dos seus povos” e “assegurar o seu desenvolvimento harmonioso pela redução das desigualdades entre as diversas regiões e do atraso das menos favorecidas”.
Passaram 60 anos. A União Europeia converteu-se numa máquina burocrática ao serviço dos interesses económicos e financeiros dominantes. Nada mais. Em vez do respeito mútuo e da solidariedade, assistimos a uma escalada dos egoísmos nacionais, da intolerância e da xenofobia. Em vez da cooperação e da atenuação das assimetrias, a “lei do mais forte”, a chantagem, a humilhação. Quando, em julho de 2015, o primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, foi obrigado a aceitar as condições draconianas de um empréstimo de 86 mil milhões de euros – sob a ameaça de expulsão da zona euro – foi mais uma vez o mecanismo comunitário da chantagem que prevaleceu. Considerado pelo Financial Times como “o mais intrusivo programa de supervisão económica alguma vez aplicado na União Europeia” e mesmo tendo o FMI considerado que a dívida pública da Grécia era absolutamente insustentável, esta foi, como refere a politóloga e especialista em questões europeias, Catherine Moury, “uma ilustração paradigmática de um jogo de poder, que a Grécia acabou por perder em benefício da Alemanha e dos seus aliados. No entanto, a União Europeia (UE) foi originalmente criada para garantir que nenhuma potência europeia iria exercer hegemonia sobre os seus parceiros.” (Catherine Moury, A democracia na Europa, Lisboa, FFMS, 2016, p. 7).
O mesmo aconteceu quando, no final do ano passado, o governo grego enunciou a sua intenção de devolver o 13º mês às pensões mais baixas e não aumentar o IVA das ilhas que têm o encargo de acolher milhares de refugiados que demandaram a Europa, tentando, no primeiro caso, mitigar a miséria de grande parte da sua população e, no segundo, implementar a solidariedade europeia com um dos países que constituem a sua fronteira externa. A recusa liminar das autoridades de Bruxelas mostra bem o ponto a que se chegou, com o Eurogrupo a retaliar com a suspensão de quaisquer medidas de alívio à dívida grega.
Nesta “central de negócios” em que se transformou a UE, a crescente concentração de poder nas mãos dos países credores é inversamente proporcional aos mais elementares princípios da democracia, imunizando a atuação dos dirigentes comunitários da indispensável legitimidade eleitoral e da consequente responsabilização pública pelas suas decisões. Ainda para mais quando estas decisões implicam cidadãos de outros países, relativamente aos quais não há qualquer espécie de consulta, impondo-lhes medidas extremamente gravosas para a sua vida e dignidade pessoais, e atentatórias do seu orgulho nacional. As ideias originais de solidariedade, consenso e compromisso que constituíram os alicerces da construção europeia (nomeadamente no respeito pelos interesses dos países mais fracos), há muito que já não têm qualquer relevância no governo da União, tendo sido substituídas pela mera lógica usurária do credor-devedor. A exclusão do Parlamento Europeu das deliberações tomadas no quadro da União Económica e Monetária é um exemplo flagrante deste processo. Tal como a constatação de que apenas 10% do dinheiro dos resgates recebidos pela Grécia reverteu para o Governo e cidadãos helénicos, tendo todo o resto servido para a amortização da dívida e recapitalização dos bancos. Em declarações a uma televisão grega em março de 2015, um dos diretores executivos do Fundo Monetário Internacional, Paolo Batista, reconheceu mesmo que as instituições europeias e o FMI “deram dinheiro para salvar os bancos alemães e franceses, não a Grécia” (Moury, 2016: 84).
Daí a perplexidade de um dos mais conceituados sociólogos do nosso tempo, o alemão Ulrich Beck, sobre o estado da União Europeia, ao ouvir, em finais de fevereiro de 2012, a notícia de que “O Bundestag alemão decide hoje o destino da Grécia”. Tratava-se da votação do segundo “pacote de ajuda” (cínica designação!) à Grécia, que suscitaram ao professor de Munique estas interrogações: “como é isto possível? O que significa, na realidade, uma democracia votar o destino de outra democracia? Qual a democracia que se impõe? Com que direito? Com que legitimação democrática? Ou será que os meios de extorsão da economia desempenham aqui o papel decisivo?”, para concluir, “Em que país, em que mundo, em que crise vivemos realmente quando uma tal declaração de incapacidade de uma democracia passada por uma outra não causa qualquer escândalo?” [itálicos no original] (Ulrich Beck, A Europa alemã, 2013, pp. 15-16).
Na afirmação taxativa de Ulrich Beck, “Todos sabem, mas dizê-lo abertamente significa quebrar um tabu: a Europa tornou-se alemã.” (Beck, 2013: 11). Valha-nos a esperança que o sociólogo germânico enuncia: “Este tipo de discrepância entre as expetativas e a realidade é sempre motor para a mobilização social.” (ibid: 27). Oxalá tenha razão.
Hugo Fernandez