A eleição de António Guterres para Secretário-Geral da ONU constituiu, para todos os efeitos, uma inestimável lição. E nem sequer se trata apenas da pessoa em causa, embora sejam notórios os méritos do personagem – que a generalidade das opiniões e a sucessão de votações praticamente consensuais atestaram de forma inquestionável – depois de dez anos exemplares como Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados. Trata-se sobretudo dos mecanismos que este procedimento eleitoral desencadeou e dos processos político-diplomáticos que revelou.
Antes de mais, o inédito processo plebiscitário adotado para a escolha do responsável pela ONU, a mais importante organização planetária, que já passou os 70 anos de existência. Saúda-se a possibilidade, agora encetada, de escrutínio público dos candidatos à nomeação, com audições perante a Assembleia-Geral. E a este impulso democrático, acresce a circunstância da candidatura de António Guterres, que não foi promovida por nenhuma das potências mundiais, acabar por recolher a unanimidade dos seus votos no Conselho de Segurança, o que significa uma indiscutível opção pelo mérito em detrimento do habitual tráfico de influências e dos mais ou menos obscuros jogos de poder. Talvez porque Guterres, ao recusar superioridades civilizacionais – mas nunca pondo em causa valores universais imprescindíveis –, tenha pautado a sua atuação à frente da ACNUR olhando para o mundo a partir da perspetiva dos “outros” (exemplo disso é a colaboração de duas grandes universidades egípcias na definição de conceitos para lidar com a ingente questão dos refugiados).
Depois, a extraordinária atuação dos responsáveis de uma União Europeia que – fica agora amplamente demonstrado – acaba por não ser nem uma coisa, nem outra. O “valor da transparência”, como se lhe referiu Manuela Ferreira Leite em artigo no Expresso (8/10/2016), permitiu que o talento se sobrepusesse, pelo menos por esta vez, à conveniência dos poderosos e dos interesses instalados. E estes foram revelados desde cedo: os dois requisitos artificial – e explicitamente – considerados indispensáveis eram ser uma personalidade oriunda da Europa de Leste e ser uma mulher. Se a segunda condição equivalia a um feminismo de pacotilha – tão machista como o dos homens – que põe o sexo à frente da competência (curiosamente, a ACNUR sob a gestão de Guterres era a única agência da ONU onde existia paridade entre homens e mulheres), a primeira tem a marca indelével da ação germânica que, desde a sua reunificação, transformou a parte leste da Europa na sua coutada de caça (basta ver o papel intempestivo e profundamente desestabilizador que teve, desde logo, no desmoronar da Jugoslávia e no eclodir da guerra dos Balcãs, nos finais do século passado, até ao seu recente envolvimento na questão ucraniana, bem como no seu apoio aos regimes “musculados” da Polónia e da Hungria).
A vice-presidente da Comissão Europeia, a búlgara Kristalina Georgieva, cumpria os dois desideratos invocados e servia às mil maravilhas a estratégia manipuladora da chanceler Angela Merkel, que contava com o apoio da Comissão Europeia (cujo chefe de gabinete do próprio presidente Jean-Claude Juncker, o alemão Martin Selmayr, se apressou a confirmar publicamente, ao escrever no twitter que a escolha de Georgieva seria um “orgulho para os europeus”), bem como do Partido Popular Europeu. Mesmo quando a Alemanha tinha prometido neutralidade a Portugal relativamente aos candidatos à liderança da ONU. Não importava que fosse uma candidatura de última hora, eivada de oportunismo político e que se havia furtado a todo o exigente processo de escrutínio a que tinham sido sujeitos os restantes candidatos. Importava, para a Alemanha, assegurar a cumplicidade fiel de uma agente oriunda de um velho país aliado (desde a I Guerra Mundial, recorde-se), a Bulgária, que pudesse facilitar a sua maior aspiração política desde a II Guerra Mundial: ser membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas e ter capacidade de voto – e de veto – sobre as grandes questões internacionais, passando a poder influenciar diretamente os destinos do mundo.
Do que se sabe, e conforme noticiou o Expresso do passado dia 8 de outubro, Bruxelas fez lóbi a favor de Georgieva, tendo instruído nesse sentido os seus representantes nas capitais dos 15 países membros do Conselho de Segurança. A humilhação da candidatura de Georgieva, numa derradeira votação em que foi das menos sufragadas (conseguindo apenas atingir o 8º lugar em 10 candidatos sujeitos à votação) e a enorme derrota da estratégia alemã (não por excesso de amadorismo, mas por evidente arrogância de uma ambição imperial desmedida), obrigaram a Comissão Europeia à mais descarada mentira, tendo o seu porta-voz, o grego Margaritis Schinas afirmado ao Expresso que a “Comissão não desempenhou nenhum papel no processo de seleção e não tinha nenhuma preferência relativamente aos candidatos”. Elementos da equipa diplomática de Guterres não deixaram de sublinhar, sob anonimato, que a atitude alemã constituiu “um ato deliberado de uma potência que pôs os seus interesses à frente dos demais e quis fazê-lo segundo as suas próprias regras”, lembrando que “a União Europeia mostrou que não tem peso no mundo e a Alemanha viu recordado que a ONU nasceu da sua derrota” (Expresso, 8/10/2016). Nem mais!
O resultado deste processo foi excelente para as Nações Unidas e péssimo para a coesão europeia. Como justamente assinalou a jornalista Teresa de Sousa, “Se a Europa não se consegue entender sobre o candidato a liderar a ONU, também não se conseguirá entender sobre o seu papel e o seu lugar no mundo.” – para concluir – “A Europa consegue dar tiros no pé, mesmo quando nem sequer seria necessário sacar da pistola.” (Público, 7/10/2016). Cada vez mais remetida para a condição de “Velho Continente”, na desencantada opinião de Viriato Soromenho-Marques, “A Europa está à deriva. É um corpo sem cérebro, possuído pela pulsão da fragmentação. Constitui um fantástico potencial de desordem política e económica internacional.”
Hugo Fernandez