Em artigo publicado no Público (27/7/2016), o advogado João de Macedo Vitorino brinda-nos com o seguinte raciocínio: “Os tempos que vivemos estão a dar-nos uma dura lição: a democracia vacila, tanto na Europa como nas Américas, pois vemos que das consultas aos povos não saem decisões racionais, mas sim escolhas emocionais.” E desfia um rol de exemplos que vão desde a Venezuela e os EUA a um conjunto de países europeus como a França, Espanha, Áustria, Hungria, Polónia e, em especial o caso do reino Unido e do “Brexit”, onde supostamente, o povo escolheu “o mal para si próprio e para os outros”. Proclamando que “em verdadeira democracia os fins só podem ser os essenciais à vida em liberdade” e que “o povo soberano é incapaz de definir quais os fins comuns da sociedade em que vive e cede àquele que mais lhe prometer no momento do voto”, Vitorino conclui com esta extraordinária afirmação: “a democracia, para poder dar-nos a liberdade, precisa de escolhas racionais. Se insistirmos em propor aos eleitores escolhas irracionais e o povo insistir em escolhas sentimentais, a democracia acabará por falhar e cederá o lugar a outras formas de governo em que a liberdade cederá, por sua vez, a outros fins com ela incompatíveis, sejam eles o bem-estar social ou a igualdade, sejam eles os fins individuais de um qualquer ditador.”
Perante tal opinião, não poderemos deixar de tecer algumas considerações. Para além da óbvia dificuldade em definir o que podem ou não constituir “escolhas racionais”, as sociedades mostram-nos, ao longo da sua história, a extrema variedade dos fatores indutores de determinadas decisões ou comportamentos – individuais ou coletivos – e a inextrincável mescla de sentimentos, emoções, razões, cálculos, crenças, atitudes, valores, tradições, que estão por detrás da interação social. Daí a sua incomensurável complexidade (e, simultaneamente, o irresistível fascínio do seu estudo). A teoria sociológica que pretendia interpretar as ações dos indivíduos pelo cálculo simplista de custos e benefícios – precisamente apelidada de “teoria da escolha racional” – depressa se confrontou (a não ser em modelos tão abstratos quanto asséticos da denominada “teoria dos jogos”) com a imprevisibilidade da conduta humana. Afinal qual é a parte racional e a parte emocional de querer viver uma vida decente? É por isso que não são credíveis os anúncios de evoluções teleológicas ou de “fins da história” antecipados.
A tese de Vitorino levanta um outro problema. É que se as elites insistirem em menorizar civicamente a população para garantirem o seu domínio, não podem depois assacar-lhe falta de discernimento nas decisões que esta é chamada a tomar. Se se considera que “o povo soberano é incapaz de definir quais os fins comuns da sociedade em que vive e cede àquele que mais lhe prometer no momento do voto”, de quem é a verdadeira responsabilidade? Daquele que perversamente promete o que sabe que não vai cumprir, ou daquele que, ainda que com manifesta ingenuidade, crê na benignidade das intenções alheias? Se a quantidade e qualidade de informação à disposição dos indivíduos for propositadamente medíocre, dificilmente obteremos resultados excelentes. Se a capacidade de decisão estiver condicionada a um leque cada vez mais reduzido de dados e opiniões, o juízo formado terá que ser muito deficitário. Se insistirmos num permanente processo de desfocagem dos indivíduos e de alienação generalizada relativamente às suas condições de vida e às possibilidades que existem para a sua transformação, dificilmente poderemos obter algo mais do que apatia e submissão aos que detêm o poder.
Enquanto um qualquer jogador ou treinador de futebol tiver mais tempo de antena televisiva do que o atribuído a um debate sério sobre os problemas das sociedades, ou se uma fugaz referência a uma iniciativa política ou cultural se subsumir nas intermináveis arengas diárias sobre antecipações/previsões/relatos/comentários/rescaldos de competições desportivas, dificilmente poderemos ter uma população informada e consciente das opções a tomar. E quem é que promove este estado de coisas? Quem são os detentores dos meios de comunicação social, quem são os opinion makers omnipresentes, qual o “imaginário social” que é constantemente inculcado nas populações, quem controla as “regras do jogo”, quem são os manipuladores, quem manda? Faz lembrar os resultados daquela anedótica experiência científica em que, depois de tirarem as pernas e as asas a uma mosca e pedirem, debalde, para ela saltar, se chega à conclusão de que a mosca, desprovida dos seus membros, não ouve.
Bem mais séria e assertiva na análise deste fenómeno é a reflexão do conhecido economista indiano e prémio Nobel da Economia, Amartya Sen, que, usando o conceito das “preferências adaptativas”, explica que “As pessoas carenciadas tendem a acomodar-se às suas privações por causa da mera necessidade de sobrevivência e podem, como resultado, não ter a coragem de exigir qualquer mudança radical e ajustar mesmo os seus desejos e expetativas ao que, sem ambições, veem como alcançável” (Amartya Sen, O Desenvolvimento como Liberdade, Lisboa, Gradiva, 2003, p. 77). Em todo o caso, este amesquinhamento existencial e abusiva apropriação das competências cívicas mais elementares dos indivíduos a que o pensamento único neoliberal e o poder globalizado têm conduzido a humanidade pouco terão a ver com qualquer noção de uma sociedade regulada democraticamente.
As questões europeias, pela sua enorme relevância, são um exemplo flagrante das circunstâncias a que temos feito referência. A sobranceria e autossuficiência dos responsáveis comunitários é verdadeiramente aterradora. A sistemática recusa em consultar as populações sobre os tratados e as políticas europeias e o enorme poder que é atribuído a órgãos não eleitos e, por isso, não representativos da vontade dos cidadãos da União, faz da “integração realmente existente” – segundo a feliz expressão do sociólogo João Rodrigues (Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, setembro 2016), lembrando outros ismos igualmente pouco recomendáveis – uma realidade cada vez mais presente e opressiva (basta pensar no caso do denominado Eurogrupo, órgão que não está previsto em nenhum tratado europeu, ou da panóplia de comissários políticos que não foram sufragados por ninguém). Ao invés, o desprezo com que são tidas em consideração as eleições nacionais e as opções políticas tomadas por países soberanos, bem como a irrelevância com que se encara o Parlamento Europeu, indiciam a clara deriva autoritária de Bruxelas. E que não haja dúvidas de que não são os referendos que fazem perigar a democracia na Europa, mas, pelo contrário – e por mais “emocionais” ou “racionais” com que possam ser encarados – é a “deslegitimação democrática do processo europeu” que constitui “a fonte da pressão referendária”, como justamente sublinha José Pacheco Pereira (Público, 30/7/2016). Importa, por isso, atentar nas lúcidas palavras deste historiador: “Nunca houve em Portugal pluralismo na discussão europeia. Quando muito, junta-se uns mais europeístas com outros menos europeístas, mas nunca se dá o pódio a um discurso que diga pura e simplesmente que hoje a União Europeia funciona exatamente ao contrário das intenções dos seus fundadores.” (Público, 23/7/2016).
Se se considera que a democracia é um sistema em falência e que “a liberdade cederá, por sua vez, a outros fins com ela incompatíveis, sejam eles o bem-estar social ou a igualdade, sejam eles os fins individuais de um qualquer ditador” [itálicos meus], não só estaremos, aí sim, muito perto da apologia de um regime totalitário – ao serviço dos sacrossantos mercados ou de um qualquer líder endeusado – como abdicaremos definitivamente de uma noção mínima de “bem comum”. Mas se, como dizia Nicolau Maquiavel nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, obra publicada postumamente em 1531, “os levantes de um povo raramente são perniciosos à sua liberdade”, talvez então o problema não esteja no povo, mas nas elites que dele se servem. Antes de censurar o povo, talvez fosse mais sensato – e, portanto, racional – mudar de elites.
Hugo Fernandez