A recente polémica sobre a capitalização da Caixa Geral de Depósitos junto das instituições europeias é um exemplo flagrante da forma mentis prevalecente na atual União. Em declarações prestadas sobre o assunto no início do mês de junho, a comissária europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, não levantou objeções a essa intenção, “desde que o Estado invista no banco como faria qualquer outro investidor privado.” (TSF, 6/6/2016), garantindo que não há, por parte da Comissão Europeia, qualquer preconceito em relação à propriedade pública de um banco: “De maneira nenhuma. Nós somos neutros em relação à propriedade. Por isso, não há qualquer questão em relação à propriedade”, assegurou a comissária. E, numa velada ameaça ao Governo português, acrescentou que "As decisões não podem ser políticas. Também porque eventualmente podem ter que ser levadas a tribunal. E o tribunal não vai ouvir nada que seja político ou preconceituoso relativamente a um Estado ou um tipo de propriedade em vez de outro tipo de propriedade".
Isto é, o dinheiro público a disponibilizar pelo Estado português para financiar um banco público tem que seguir uma lógica privada de investimento, que apenas tem por objetivo a maximização dos lucros, e não o cumprimento das funções que um banco do Estado deve ter no incentivo à economia e no privilegiar do investimento público. Remetendo-se a questão para o domínio exclusivamente jurídico e procedimental, proclama-se, alto e bom som, a inutilidade das opções políticas na governação dos bens públicos. Escamoteiam-se, desta forma, os preceitos ideológicos subjacentes a semelhante posição e remetem-se os eventuais diferendos para as inevitabilidades normativas. Qualquer ideia de soberania nacional fica assim subsumida aos sacrossantos “mercados” e a meras conveniências mercantis. É este o estado da União Europeia.
Poucos dias depois, em entrevista ao jornal Público (13/6/2016), o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, a propósito do crescente sentimento de desencanto dos europeus relativamente à UE (e o crescimento das forças políticas nacionalistas e xenófobas), afirmou que “há na Europa, não apenas um sentimento de injustiça, mas uma realidade de injustiça.”, explicando, de seguida “Se os governos pedem sacrifícios aos pais – menos salários, mais trabalho, mais impostos, menos serviços públicos –, dizendo-lhes que é para benefício dos seus filhos no futuro, eles compreendem. Agora, quando se lhes pede que aceitem estes sacrifícios para salvar os bancos e os seus filhos estão no desemprego, revoltam-se.” (tenhamos em mente, para o caso português, e segundo uma nota do Banco de Portugal – que pela primeira vez revelou informações sobre esta matéria –, que os resgates do sistema financeiro representaram, entre 2007 e 2015, um aumento do défice público em 7%, atingindo perto dos 13 mil milhões de euros). A conclusão que Schulz tira desta situação é que “a resposta séria é organizar uma economia mais justa. Temos um crescimento considerável do grande capital nos últimos anos e, do outro lado, um aumento considerável da pobreza. Isso mostra que não vivemos numa sociedade justa e razoável.” Mas quantos não denunciaram já esta realidade e foram vilipendiados e, pura e simplesmente, ostracizados? Serão estas palavras ditadas pela má consciência de um eurocrata?
Como compreender, por exemplo, que a questão das sanções por não cumprimento do défice público de 3% que pesa sobre os países da União, tenha tratamentos diferenciados por parte de Bruxelas? Recorde-se, por exemplo, que entre 1999 e 2015, Portugal falhou 10 vezes o cumprimento das regras orçamentais; à sua frente, porém, está a França que, em igual período de tempo, entrou em incumprimento por 11 vezes. Mas, como afirmou eloquentemente o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, a hipótese de sanções contra esta última está afastada porque “A França é a França.”! Como podia ter aludido ao reiterado incumprimento, desta vez por excedentes externos, da Alemanha, que, no passado mês de março registou o valor recorde de 30,4 mil milhões de euros, em flagrante violação das regras do Tratado Orçamental. Com esta espantosa sinceridade, fica traçado o quadro completo do arbítrio, do abuso de poder e dos jogos de interesses em que se transformou a União Europeia.
O artigo publicado no “The Guardian” a 5/4/2016 (e traduzido no número de junho do Courrier Internacional, de onde retiramos as citações) do ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis, é deveras impressionante. Num relato biográfico inicial, Varoufakis fala do seu tio Panayiotis que foi diretor da empresa alemã Siemens na Grécia de meados da década de 50 até se ter demitido nos finais dos anos 70. A razão para essa demissão foram as constantes pressões dos seus superiores germânicos para subornar políticos gregos de forma a assegurar a posição dominante da Siemens na Grécia, nomeadamente na conquista de contratos leoninos na digitalização da rede telefónica grega. Já depois da adesão deste país à União Europeia, em 1981, esta história edificante repete-se, por intermédio de um seu sucessor, Michalis Christoforakos. Quando as autoridades gregas começaram a investigar o assunto, esse indivíduo fugiu para a Alemanha, que sempre recusou a sua extradição para Atenas para responder perante a justiça do seu país. Complacentes com a corrupção – que tanto vituperam no caso dos malandros do sul da Europa – e com a defesa estrénua de interesses próprios, as autoridades alemãs deram mostras inequívocas daquilo que, em grande medida, tem sido a base do seu domínio europeu (lembremo-nos, a propósito, da venda de dispendioso material de guerra alemão a uma Grécia já sobreendividada, com o correspondente beneplácito comunitário). Atitude condizente, aliás, com a espantosa – porque profundamente antidemocrática – resposta do ministro das Finanças alemão Wolfgang Schäuble, quanto à necessidade de uma renegociação do “programa económico grego”, pedida pelo governo do Syriza: “As eleições não podem alterar o programa económico de um Estado-membro”. Fica, assim, demonstrada aquilo que Varoufakis considera ser a “derrota final da ideia de uma Europa unida, humanista e democrática.”
Em 1815, o corifeu do liberalismo doutrinário, Benjamin Constant, escrevia, “A riqueza é uma força que se aplica melhor a todo e qualquer interesse e, por consequência, é muito mais real e mais bem obedecida. O poder ameaça, a riqueza compensa. Foge-se ao poder enganando-o; mas para obter os favores da riqueza é preciso servi-la. Ela vai acabar por prevalecer.” (cit. em Luciano Canfora, A Democracia. História de uma Ideologia, Lisboa, Edições 70, 2007, p. 91). Ora, como refere o professor de Filologia Clássica da Universidade de Bari, Luciano Canfora, a situação que hoje se vive é que “os poderes decisivos se furtaram ao predomínio dos órgãos eletivos, e são confortados pelo «plebiscito dos mercados», bem mais do que o dos votos. O poder está noutro lado e a criação de organismos supranacionais «técnicos», de caráter europeu (que inclusive fisicamente estão noutro lado), contribuiu muito para que os parlamentos nacionais deixassem de ter o controlo das decisões fundamentais para a economia (isto é, fundamentais tout court).” (Canfora, 2007: 284-285). Ora é precisamente aqui que reside o problema; a democracia passa a ser um mero negócio, como tudo o resto. A democracia deixa de significar “soberania popular” para se converter em conventículo de interesses obscuros e de poderes fáticos [aquilo que o jurista e antifascista italiano, Sílvio Trentin, a propósito da realidade americana, caracterizava como o “governo dos conselhos de administração” (cit. Canfora, 2007: 211)]. Como conclui o académico italiano, “a anulação soft do sufrágio universal é, de todas as maneiras, compensada pela graciosa concessão de continuar a fazer-se ciclicamente legitimar através de eleições.” (Canfora, 2007: 285). Triste consolação.
Quando o comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação, o ex-governante português Carlos Moedas, afirma que a União Europeia “É um caminho norteado por princípios: direitos fundamentais, democracia, Estado de direito, tolerância e solidariedade.” (Diário do Alentejo, 17/6/2016), só pode dar vontade de rir! Transformada numa “praça da jorna” entre uns poucos países poderosos e os restantes, seus dependentes e prontos a aceitar quaisquer condições, a presente União Europeia não passa de uma caricatura dos princípios proclamados aquando da sua constituição. Não admira, por isso, o resultado do referendo britânico.
Hugo Fernandez