O “aguenta, aguenta (mais austeridade)!”, Fernando Ulrich, presidente do BPI, recebeu em 2015, 592 mil euros brutos anuais, o segundo maior rendimento nesta área em Portugal. O recordista dos banqueiros foi, sem dúvida, António Monteiro, do Santander/Totta, que auferiu, em igual período, 728 mil euros brutos anuais. Em qualquer caso, bem longe dos 232 mil euros ganhos por José de Matos, presidente cessante do banco do Estado, a Caixa Geral de Depósitos. Ora, não só o próximo presidente do banco público teve luz verde do atual Ministério das Finanças para formar a respetiva equipa dirigente, como lhe foi assegurado pelas autoridades nacionais que deixaria de ser aplicado o estatuto de gestor público aos administradores executivos da Caixa (que define o salário do primeiro-ministro como referencial máximo da remuneração), em despacho que será exarado para o efeito. De acordo, aliás, com as recomendações do Banco Central Europeu, que questionou os constrangimentos salariais impostos aos administradores da CGD. Resultado: o novo presidente do banco público, António Domingues, poderá vir a auferir aquilo que ganhou como vice-presidente do BPI, em 2015, isto é, 542 mil euros brutos anuais (Expresso, 30/4/2016). Em Portugal, o salário mínimo é de 530 euros mensais brutos (7.420 anuais) e o médio de 980 euros mensais brutos (13.720 anuais, metade da média europeia). O trabalho deste banqueiro vale, portanto, cerca de 73 vezes mais do que o de um trabalhador a auferir o ordenado mínimo e 39,5 vezes mais do que o de um trabalhador com um salário médio. Vale mesmo?
Nada de extraordinário, se pensarmos no aumento dos salários da administração da EDP para 2016, que permitirá ao seu presidente executivo, António Mexia, ganhar 2,5 milhões de euros brutos anuais, um aumento de cerca de 700 mil euros relativamente a 2015 [para que conste, o ordenado do primeiro-ministro, António Costa, que tem a suprema responsabilidade de governar o país, é de apenas 90 mil euros brutos anuais (Visão, 5/5/2016)]. Contas feitas, a EDP irá gastar cerca de 14 milhões de euros com o seu conselho de administração executivo, contra os 10 milhões de euros gastos em 2015. Mesmo o presidente não executivo da empresa, Eduardo Catroga, passará dos 490 mil euros para os 515 mil (Diário de Notícias, 20/4/2016). A julgar pelos ordenados de Carlos Gomes da Silva, presidente da Galp (2,5 milhões de euros), de Pedro Queiroz Pereira, presidente da Semapa (1,6 milhões de euros) ou de Diogo da Silveira, presidente da Portucel (1,1 milhões de euros) (Diário de Notícias, 25/5/2016), quantos responsáveis por grandes empresas portuguesas não haverá que auferem somas desta grandeza? A disparidade relativamente ao rendimento do comum dos cidadãos nacionais é exorbitante. Só as remunerações do conjunto dos administradores da EDP davam para pagar o recente aumento do ordenado mínimo de 505 para 530 euros mensais para os cerca de 650 mil trabalhadores nessas condições, aumento tão duramente criticado – porque considerado excessivo! – pela Comissão Europeia, pelo Eurogrupo e pela direita lusitana.
A estimativa que o economista francês Gabriel Zucman publicou na revista L’Obs é igualmente elucidativa: cerca de 37% da riqueza produzida em Portugal está depositada em paraísos fiscais, o que, mesmo em termos europeus, constitui um recorde absoluto [os países se seguem são a Grécia, com 25,8% do PIB e a Islândia com 22,5%, sendo que estados como a França, Reino Unido ou a Alemanha se situam abaixo dos 20% do respetivo PIB (Visão 19/5/2016)]. No estudo que fez sobre a evasão fiscal, este economista explica que “é mais fácil pagar menos impostos quando se é muito rico”, o que leva estas pessoas a ampliar indefinidamente a sua fortuna, já que beneficiam de “taxas de rendimento elevadas e pagam pouco ou nada de impostos”. Zucman conclui sarcasticamente que “A riqueza extrema afeta a moralidade” e induz ao incumprimento das leis.
Pelo contrário, no “inquérito aos rendimentos e condições de vida”, recentemente divulgado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), constata-se não só que 26,6% dos portugueses vive em risco de pobreza e de exclusão social, como existe perto de meio milhão de trabalhadores pobres em Portugal (Público, 14/5/2016), isto é, uma fatia de cerca de 11% da população ativa a quem um emprego já não garante a subsistência com um mínimo de dignidade, reflexo da desvalorização acentuada do trabalho prosseguida pela governação PSD/CDS, com o beneplácito do atual poder político europeu e segundo os ditames da ordem neoliberal hegemónica. Para além da perversidade do modelo económico seguido, estes números mostram um verdadeiro ataque ao progresso civilizacional secular e ao pleno usufruto da cidadania neste início do século XXI. É que, como referiu o historiador francês Pierre Rosanvallon, a organização da vida coletiva em democracia pressupõe “parler d’État-providence et de politique redistributive, en traçant en permanence la ligne de partage entre les différences acceptées et les inégalités insupportables.” [“falar de Estado providência e de política redistributiva, traçando permanentemente a linha de demarcação entre as diferenças aceites e as desigualdades insuportáveis” (tradução minha), Pierre Rosanvallon, La Démocratie Inachevée, Paris, Gallimard, 2003, p. 444)].
Hugo Fernandez