Num artigo de opinião no jornal Público (11agosto2015), João Miguel Tavares faz o “Elogio de Rui Tavares” – título da crónica – e do livro que este recentemente publicou, Esquerda e Direita – Guia Histórico para o Século XXI, Lisboa, Tinta-da-China, 2015. O motivo para tal panegírico prende-se com aquilo que João Miguel Tavares considera ser uma raridade no pensamento da esquerda: “ele não fala da direita a partir de uma posição de superioridade moral”. O cronista explica essa atitude da esquerda, “porque o valor da igualdade é mais dado a cartadas morais do que o valor da liberdade, na medida em que tem uma relação mais próxima com as condições de vida das pessoas e com a luta contra a injustiça social”, enquanto que “A defesa da liberdade e do mérito individual, típica da direita, exige percorrer mais quilómetros até se refletir no bem-estar comum – exige, digamos assim, mais paciência, maior elaboração e uma certa fé na «mão invisível».”
Não nos iremos debruçar sobre os méritos ou deméritos do livro citado (que é, aliás, excelente). Limitar-nos-emos à análise do que sobre ele é comentado. E, a esse propósito, parece-nos que as considerações feitas por João Miguel Tavares assentam num conjunto (digamos assim) de mal entendidos. Com efeito a grande diferença entre esquerda e direita radica na posição que se tem perante os poderes instituídos. Trata-se de uma diferença política e não de uma distinção moral. Na esquerda há uma clara contestação da lógica capitalista. Na direita há a sua aceitação e exaltação. Quer uma, quer outra destas posições servem determinados interesses sociais que, sendo legítimos, são profundamente divergentes. Pôr estas questões em termos de moralidade confunde as coisas e apouca as razões de ser de projetos alternativos de sociedade.
Outra dimensão do problema é a discussão que decorre das elaborações teóricas que justificam as posições assumidas. Aí aparece a dicotomia igualdade/liberdade, a questão do mérito individual ou do bem-estar comum. Antes de mais convém referir – e ao contrário do que considera João Miguel Tavares – que a esquerda, porque se opõe à ordem vigente, tem um trabalho bem mais árduo (e exige, convenhamos, muito mais resiliência e espírito de sacrifício) na fundamentação das suas posições e no combate politico aos seus adversários do que a direita, que, sendo poder e suportando o sistema, usufrui de meios institucionais e ideológicos muitíssimo mais poderosos que permitem que o pensamento dominante se transforme numa doxa omnipresente. Só uma profunda consciência sobre a atual situação e uma aguda perceção das desigualdades e injustiças sociais promovidas pela globalização neoliberal permitem perspetivar outros caminhos para a vida coletiva. E isso, quer se queira quer não, é património da esquerda.
Aquilo que a esquerda desvenda – e que a direita pretende ocultar – é a elementar e matricial circunstância, como explicou o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas em meados dos anos 70 do século passado, de “Todas las sociedades de clases, puesto que su reproducción se basa en la apropriación privilegiada de la riqueza producida por la sociedad, tienen que resolver el siguiente problema: distribuir el produto social de manera desigual y sin embargo legítima.” (Problemas de Legitimación en el Capitalismo Tardio [1973], Madrid, Cátedra, 1999, p. 162). Cita, a propósito, o seu compatriota e sociólogo da política Claus Offe, quando este diz que “la dominación política es, en las sociedades industriales capitalistas, el método de dominación de classe que no se da a conocer como tal” (ibid., p. 233, itálicos no original). O que diferencia as pessoas de esquerda das de direita (ou, para o efeito, de todas as outras) é que aquelas intuíram e denunciam a exploração e desigualdade sociais como características orgânicas do sistema capitalista, não havendo discurso ideológico que consiga escamotear essa realidade. Quem, pelo contrário, apoia semelhante sistema – de forma consciente ou não – não pode deixar de se tornar cúmplice da iniquidade.
É, assim, impossível para a esquerda ter “fé na «mão invisível»” que concorra para o “bem-comum” a que alude João Miguel Tavares (retomando a conhecida formulação de Adam Smith no enaltecimento das virtudes da iniciativa individual e do mercado livre no bem estar da sociedade), porque a prossecução dos interesses individuais não passa disso mesmo, como a ordem neoliberal amplamente tem demonstrado. O “bem-comum” exige, pelo contrário, um sentimento de pertença a uma comunidade e a luta pela dignificação da vida de todos, através do desenvolvimento de políticas inclusivas e da promoção efetiva da igualdade de oportunidades entre os cidadãos. E só quando estes pressupostos estiverem garantidos é que fará sentido falar de “mérito individual”, premiando aqueles que efetivamente merecem e obstando à perpetuação de estatutos herdados ou adquiridos à partida.
São estas as verdadeiras exigências do pleno usufruto da liberdade que, longe de estar em contradição com a busca de uma melhoria generalizada das condições de vida da população, são um seu requisito indispensável. Não há liberdade sem igualdade social. Para assegurar a consecução da autonomia individual é necessário que haja condições para tal, isto é, que o indivíduo possua um nível de vivências, instrução, assistência e rendimento que lhe permita fazer as escolhas que entenda. Logicamente a sociedade tem que estar organizada para esse fim, o que manifestamente não é o que se passa nos nossos dias. Com efeito, a situação de crise permanente que a globalização neoliberal nos trouxe – e que implica um retrocesso civilizacional a vários níveis – traduz-se naquilo que o estimado professor da Universidade de Évora, Silvério da Rocha-Cunha designa por “uma inefável propensão para, ideologicamente, fazer da necessidade virtude.” (Crítica da Razão Simplificadora. Escritos sobre Poder e Cidadania numa Era de Compressão, Famalicão, Húmus, 2015, p. 151).
Por isso é que, para a esquerda, o mito do self made man – pelo menos quando aplicado de forma generalizada – é sumamente falacioso, tendo mais a ver com intenções piedosas ou expetativas vãs, do que com a realidade dos factos. E este logro, longe de se poder atribuir a razões de (mau) carácter ou de hipocrisia individuais, ou a um qualquer espírito conspirativo – precisamente porque não se trata de uma questão moral –, decorre antes de um mecanismo doutrinário engendrado pelo próprio funcionamento do sistema capitalista. Os críticos do liberalismo acentuam, aliás, este aspeto mistificador do statu quo, que faz com que esta ideologia seja considerada ou uma “obra-prima de cinismo político”, ou constitua uma “incrível «ingenuidade» perigosa.”, conforme a caracterizou o filósofo francês Michel Richard num manual clássico do pensamento contemporâneo (As Grandes Correntes do Pensamento Contemporâneo, trad. José Saramago, Lisboa, Moraes, 1978, p. 36).
É, em todo o caso, nestas distinções que se pode verificar um maior ou menor grau de congruência com a realidade da esquerda e da direita e ajuizar da maior ou menor valia das respetivas propostas. Tomando de empréstimo o conceito de Freud de “princípio da realidade”, isto é, a capacidade mental de enfrentar as exigências da vida real e das consequências dos próprios atos, suportando contrariedades e adiando compensações (princípio do funcionamento mental que, como disse em 1911 o médico neurologista austríaco, faz parte do processo normal de amadurecimento do indivíduo), dir-se-ia que o realismo e objetividade da esquerda é inversamente proporcional ao distanciamento e distorção da realidade por parte da direita.
Se ser de esquerda, como alega João Miguel Tavares, é uma questão de moral (neste caso, superioridade da dita!), ser de direita parece resultar de uma postura, a bem dizer, religiosa, uma questão de fé. Porquê? Porque se acredita viver num mundo equilibrado, próspero, justo, enfim, harmonioso – o “fim da história”, proclamado por Fukuyama – um mundo onde impera a meritocracia, onde não há exploração, onde a igualdade de oportunidades é uma realidade, onde todos têm a vida que merecem. Será que à direita falta, afinal, o “princípio da realidade”?
Hugo Fernandez