“Com este Governo, os portugueses sabem com o que contam”, afirmou Maria Luís Albuquerque na apresentação, em abril passado, do Programa de Estabilidade. Esta afirmação revela, para lá de uma evidente intenção eleitoral, todo um programa político. O dos governantes imbuídos de um espírito de missão que não só pretende corrigir alegados desmandos passados, como reconduzir a população portuguesa ao redil da submissão e da conformação às regras arbitrariamente impostas pelo diktat germânico. Aquele mesmo diktat que, há uma década, nos induzia a acelerar os níveis de consumo dos produtos industriais das economias do norte da Europa – completada que estava a destruição da capacidade produtiva dos países do sul (bendita UE!) – a coberto dos generosos créditos bancários disponibilizados sob o beneplácito do todo-poderoso Bundesbank. A mesma determinação que, depois de encorajar políticas públicas megalómanas e irresponsáveis, nos levou a uma situação de endividamento extremo que, não só é impagável por ser exorbitante, como nos coloca num tal grau de insolvência que ficamos à mercê de todos os desmandos impostos pelos nossos credores, com óbvio prejuízo para a nossa soberania e dignidade. Passamos a outra fase do negócio: os que lucraram com as vendas, lucram agora com a nossa dívida e com a nossa dependência. Transformamo-nos numa espécie de “vítimas-culpados”, condição paradoxal decorrente da bizarra narrativa que nos querem impor.
Nunca as desigualdades sociais foram tão extremas em Portugal. Nunca os mais ricos foram tão ricos. Mas são esses mesmos que fizeram fortuna e se alcandoraram ao estatuto do DDT (“Donos Disto Tudo”), que cobram a todos os restantes a culpa de terem “vivido acima das possibilidades” apenas porque decidiram, no âmbito de uma escolha perfeitamente racional perante as condições existentes, tentar melhorar a sua vida. Será isto crime? Ou deveremos antes assacar responsabilidades a quem promoveu negócios ruinosos de muitas centenas de milhões de euros para os cofres do Estado a coberto do saneamento dos bancos, da especulação financeira, das privatizações a preço de saldo, das derrapagens orçamentais em obras públicas, dos montantes gastos em consultadorias, das PPP, dos swaps, das offshores ou dos ordenados exorbitantes e reformas “douradas” da aristocracia empresarial e política? Será que a aquisição de um frigorífico ou um micro-ondas podem ser colocados no mesmo patamar de imputabilidade dos milionários resgates bancários que, por serem considerados instituições “demasiado grandes para poderem falir”, fazem jus ao vicioso princípio da privatização dos lucros e da socialização das dívidas? O Governo PSD/CDS-PP quer-nos convencer que sim. E por isso a sua missão é “empobrecer os portugueses”, garantindo mão-de-obra barata (com a consequente maximização dos lucros) e a conveniente submissão que vidas precárias necessariamente engendram. Nestas circunstâncias, as pessoas tendem a conformar-se com o que existe e a temer que a mudança traga desgraças acrescidas, como refere o jornalista Manuel Carvalho: “Num país acomodado, triste e desesperançado, a felicidade conquista-se com a ausência de riscos, com a prudência dos pais de família poupados e rotineiros. Vale mais ter um corte de 0,9% da sobretaxa do IRS do que nada, é melhor acabar com a austeridade só lá para 2019 do que nunca.” (Público, 19/4/2014).
“Com este Governo, os portugueses sabem com o que contam”, será a expressão mais acabada da resignação das gentes e das mentes. Uma espécie de revisitação do “viver habitualmente” salazarista. Mas, para prevenir qualquer veleidade de contestação ao atual status quo e a busca de outros caminhos, o primeiro-ministro Passos Coelho vai ainda mais longe. Junta a esta afirmação toda uma visão da sociedade que recupera lógicas reacionárias de antanho. Na intervenção que proferiu em finais de abril no 7º Congresso da Confederação dos Agricultores de Portugal, no Centro de Congressos do Estoril, Passos Coelho saiu-se com esta pérola doutrinária ao comentar o programa económico apresentado pelo PS: “sobretudo aposta numa recuperação da nossa economia através do consumo: quer dizer, dando mais dinheiro às pessoas para as pessoas gastarem". Admirável!
Nem sequer discutimos a opção de política económica do atual Governo de beneficiar as grandes empresas exportadoras, em grande medida multinacionais, em detrimento das pequenas e médias empresas que trabalham no e para o mercado nacional, e que constituem a imensa maioria do tecido empresarial português. Ou o facto elementar de ser precisamente o consumo – nosso ou alheio – que permite o funcionamento da economia de qualquer país. O que choca na afirmação do primeiro-ministro é a condenação do consumo como uma espécie de pecado mortal imputado à natural aspiração das populações em quererem melhorar o seu nível de vida. “Dar mais dinheiro às pessoas para as pessoas gastarem” torna-se assim algo de profundamente condenável. No entanto, as crescentes disparidades de rendimento no seio da sociedade portuguesa e a concentração da riqueza nas mãos de uns poucos mostram que esta condenação não é para todos. Para os mais abonados, todas as benesses são concedidas, todo o consumo é permitido, toda a ganância é incentivada. Para esses, considerados exemplos de sucesso e incensados como vencedores, todos os recursos são disponibilizados. O resto da população terá que se contentar com o que sobra, na boa tradição do “pobrezinhos, mas honrados” salazarista. [A propósito desta cumplicidade entre o poder político e económico, lembramos a elucidativa afirmação de George W. Bush num jantar de gala no hotel The Waldorf Astoria de Nova Iorque, em 2000: “Este é um grupo impressionante – os que têm e os que têm ainda mais. Há algumas pessoas que vos chamam elites; eu chamo-vos a minha base de apoio.” (John Kampfner, “Dos Escravos aos Iates de Luxo. Uma História com 2000 Anos”, Ler, março de 2015, p. 123)].
A comprová-lo estão os cálculos de Pedro Ramos, professor catedrático da Universidade de Coimbra e antigo diretor do Departamento de Contas Nacionais do Instituto Nacional de Estatística (INE), segundo o qual houve uma brutal transferência de rendimentos do trabalho para o capital no período que decorreu entre o início da crise financeira de 2007-2008 e o final de 2013, com a perda de 3,6 mil milhões de euros em salários e o ganho de 2,6 mil milhões por parte do capital. Este economista apurou que o peso do trabalho por conta de outrem e por conta própria desceu de 53,2% do produto interno bruto (PIB) em 2007 para 52,2% em 2013 (por via, nomeadamente, das alterações ao Código do Trabalho). Já o excedente de exploração (rubrica que reflete a remuneração do fator capital) – apesar da conjuntura económica de crise – aumentou o peso na economia de 27,8% para 29,7% do PIB. Por seu lado, as rendas do imobiliário cresceram de 5,8% para 6,2%, o que representou ganhos na ordem dos 451 milhões de euros entre 2007 e 2013 (Jornal de Notícias, suplemento “Dinheiro Vivo”, 21/6/2014). Não temos razões para duvidar que tais tendências se mantiveram nestes dois últimos anos.
O preconceito de classe subjacente ao pensamento do atual Governo é servido por um discurso moralista laboriosamente camuflado pelos preceitos ideológicos da “razoabilidade” e “bom senso”. Nesse sentido, é sumamente falaciosa a pergunta “quanto custa?” que, repetida até à exaustão, não só reduz a complexidade da vida coletiva ao simples cálculo do deve e haver, como remete qualquer medida que se toma para o domínio transcendente das inevitabilidades teleológicas e não para a sua dimensão eminentemente histórica e, como tal, contingente A pergunta a fazer na definição das políticas públicas deverá antes ser “vale a pena?”, tratando-se então de uma opção (entre outras possíveis) que deverá mobilizar os recursos existentes no sentido do que se considera mais justo. Não se trata do “quanto” – até porque os recursos, ainda que limitados, existem – mas do “porquê”, do “como” e “para quem”, ou seja, dos condicionalismos da sua alocação. Não é a existência ou não de recursos que verdadeiramente está em causa, mas a sua distribuição. A questão deve ser colocada na seleção dos objetivos a atingir e dos critérios a adotar na partilha dos meios. É a própria natureza do debate democrático, aberto à confrontação das alternativas, que o reclama. É, pelo contrário, o aniquilamento das vontades sob os ditames de supostas necessidades inelutáveis (postura que, aliás, denota claros vícios totalitários) que os partidários da doxa neoliberal tentam, a todo o custo, estabelecer.
Quando a organização internacional de luta contra a pobreza Oxfam revela que, em 2012, o rendimento dos cem mais ricos bilionários do mundo ascendia a 240 mil milhões de dólares e que esta verba seria suficiente para erradicar a pobreza extrema mundial por quatro vezes (John Kampfner, op. cit., p. 131), penso que está tudo dito. Afinal, quanto custará uma vida digna para todos?
Hugo Fernandez