No final do mês de março, o Instituto Nacional de Estatística apresentou o relatório das contas públicas do ano de 2014, quase coincidindo com o triste aniversário do pedido de intervenção da troika internacional em Portugal, a 6 de abril de 2011. Tempo, pois, para balanço.
A primeira conclusão a tirar é a de que o valor do défice para 2014 ficou abaixo da meta prevista pelo Governo português em 0,3 pontos percentuais. Passou-se assim de uma previsão, em setembro (e no OE aprovado em outubro) de 4,8%, para os 4,5% que acabaram por se verificar, isto é, um saldo positivo de 513 milhões de euros nas contas públicas. Mas só na aparência estas são boas notícias. Porquê? Porque tal resultado só se alcançou à custa de uma redução brutal do investimento público, o mais baixo das últimas duas décadas. Imagine-se o que representará um défice de 2,7% em 2015, como pretende o Governo. Claro que este valor do défice poderá vir a sofrer alterações substanciais, já que não conta com o impacto do montante apurado com a venda do Novo Banco que, como tudo indica, deverá ficar bem abaixo das expetativas iniciais. Mas, tal como se apresenta neste momento, significa que o Estado se demitiu das suas funções sociais básicas, assim como da correção das assimetrias existentes, em nome de um critério – ainda que mínimo – de justiça distributiva e, sobretudo, em nome da coesão nacional, preocupação que devia nortear a ação de qualquer governo digno desse nome.
Infelizmente, o atual executivo, enfeudado que está aos grandes interesses económicos e à especulação da finança internacional, apenas se preocupou em reduzir a despesa do Estado à custa do definhamento das suas obrigações, atribuindo-as a entidades privados. O caso do Serviço Nacional de Saúde é paradigmático. Segundo os dados divulgados pelo INE a propósito do Dia Mundial da Saúde (6 de Abril), a última década é marcada pela diminuição contínua do número de camas nos hospitais oficiais (em cerca de 3700) e um acréscimo constante de camas nos hospitais privados (em cerca de 2000). O mesmo se passou com os serviços de urgência. Perante o colapso induzido dos serviços públicos de saúde, as urgências privadas duplicaram, atingindo já 12 % do total de atendimentos nos hospitais portugueses. A suborçamentação das áreas do ensino, justiça e segurança social seguem a mesma doutrina de desmantelamento do Estado e do serviço público, em benefício dos interesses privados.
A redução do défice público fez-se também penalizando os trabalhadores do Estado e o bem-estar da população em geral. Ao longo destes quatro anos, sucederam-se os cortes nos salários dos funcionários públicos, a redução no pagamento de pensões e outras prestações sociais, a aposentação antecipada (e a preços de saldo!) e despedimento de milhares de trabalhadores da função pública. Já para não falar no congelamento de admissões e progressões na carreira, assim como no aumento dos horários de trabalho e idade da reforma. Agindo fora-da-lei – não esqueçamos que todos os Orçamentos do atual Governo foram chumbados pelo Tribunal Constitucional –, e por via de um brutal agravamento de impostos (como foi o caso do IVA, do IRS, da CES ou do IMI) e de uma política de autêntico “terrorismo fiscal”, o executivo ampliou enormemente os proventos à sua disposição e cumpriu aquilo que Passos Coelho já tinha prometido: empobrecer os portugueses.
Relativamente à dívida pública, o resultado é francamente desastroso. Ultrapassando a barreira dos 130% do PIB em 2014 (130,2%) – quantia exorbitante para qualquer país e que, pura e simplesmente, não é pagável – a dívida portuguesa teve um aumento de 5500 milhões de euros face a 2013, a que se arrisca ter de somar mais 4000 milhões devido à alteração das regras contabilísticas em preparação no Eurostat (com a inclusão dos montantes relativos à capitalização acumulada de juros, como os dos Certificados de Aforro que, em 2014, ascenderam a 4055 milhões de euros), que atirará a dívida pública portuguesa para os 132,5% do PIB. Como se chegou aqui? Devido a uma política de acumulação de depósitos junto da banca e do BCE para, por um lado, fazer face a eventuais dificuldades na obtenção de financiamento e, por outro, garantir o pleno ressarcimento aos chamados investidores. Como disse a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, no encerramento das jornadas da JSD em Leiria, em março passado, “Temos os cofres cheios. Podemos estar tranquilamente durante um período prolongado sem precisar de ir ao mercado, satisfazendo todos os nossos compromissos.” Mas esquece que esse dinheiro (que em finais de janeiro ascendia a perto de 25 mil milhões de euros) é emprestado e paga juros. É que as recorrentes emissões de dívida nos “mercados” têm esse senão. Em todo o caso, segue-se a teoria do “Portugal está melhor, embora os portugueses não o sintam” que, há um ano, o líder da bancada parlamentar do PSD, Luís Montenegro, expressou de forma tão eloquente. Satisfaça-se a finança internacional, que as necessidades das populações pouco interessam.
O que isto significa é que, no final de fevereiro, segundo dados do IGCP, a dívida pública direta ascendia aos 228.227 milhões de euros, sendo que 80.355 milhões são relativos ao programa de assistência económica e financeira. Ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira, Portugal deve 27.328 milhões de euros, ao Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, a dívida é de 24.300 milhões e ao Fundo Monetário Internacional o valor ascendia aos 28.726 milhões de euros, já que neste mês ainda não se contabilizava o reembolso antecipado de 6,6 mil milhões que Portugal já fez. Afinal, todo o discurso acerca da necessidade imperiosa de reduzir o endividamento externo como condição indispensável para salvar o nosso país da bancarrota, não passou de bluff eleitoral, porque, parafraseando Camões, “valores mais altos se alevantam”. Na atual ordenação europeia, a dívida é não só uma ótima oportunidade de negócio para os bancos e especuladores internacionais, como a garantia, pelo garrote imposto aos países devedores, do cumprimento escrupuloso das políticas de exploração neoliberal e da completa submissão dos respetivos povos aos diktats do eixo Berlim-Bruxelas. Nas elucidativas palavras de Viriato Soromenho-Marques, “a experiência da segunda crucificação da Grécia, mostra que a Zona Euro se transformou numa prisão de alta segurança, na qual o mero protesto implica derreter o corpo contra a rede de alta tensão montada por regras suicidárias que desarmaram os Estados perante a voracidade dos mercados.” (Visão, 26/3/2015).
Hugo Fernandez