Surgido originariamente em 1927 como texto de uma conferência proferida pelo famoso e controverso filósofo político e jurista Carl Schmitt na Deutsche Hochschuhle für Politik em Berlim, por ocasião de um ciclo de palestras dedicado ao problema da democracia, "Der Begriff des Politischen" (O Conceito do Político) viria a tornar-se num dos grandes ensaios do pensamento político do século XX. Este escrito é, em todo o caso, indispensável para a compreensão da política e do próprio significado da democracia. Na sua tentativa de autonomizar a dimensão política das demais esferas existenciais, Schmitt defende que é o Estado o lugar por excelência da atividade política (“O conceito de Estado pressupõe o conceito do político”, dirá [Concept of the Political, Chicago, University of Chicago Press, 1996, p. 19]) e é a partir desse pressuposto que constrói toda a sua argumentação. Afastando quaisquer outras considerações de caráter extra político, toda a ação política decorre da definição precisa da dupla concetual amigo-inimigo, sendo a compreensão deste binómio o principal desiderato do próprio Estado. Subsumindo-se a esfera política na identificação matricial da dupla amigo-inimigo e erigindo o conflito como condição essencial do político, Carl Schmitt é levado a considerar a guerra como a mais radical e completa demonstração desta relação, cuja inteligibilidade tende a escapar-nos no nosso quotidiano. Não sendo o seu objetivo primordial, a guerra é a mais cabal manifestação do político, a fazer-nos lembrar a conhecida afirmação de um outro alemão, o general Carl von Clausewitz, segundo o qual “A guerra é a continuação da política por outros meios”.
Deslocando a política para um foro exclusivamente estatal, o jurista germânico afasta a dimensão social da dimensão política, pois entende que esta última procede de mecanismos e lógicas absolutamente autónomas de atuação. Pelo contrário, considera que a crise da política moderna reside precisamente no facto da sociedade se ter imiscuído no universo político, acabando por controlar o Estado que, assim, perde a sua função específica e o seu poder determinante. Esta ausência referencial do Estado como lugar exclusivo da política, que ele atribui ao modelo do demoliberalismo que acabou por moldar as sociedades contemporâneas, confrontavam claramente as simpatias nazis de Carl Schmitt. Doravante, a ordem liberal empenhava-se em renunciar a qualquer horizonte bélico como expressão característica da ação política, preservando a normalidade conflitual dos interesses sociais distintos e dos projetos políticos divergentes, pela transformação ontológica dos inimigos em adversários e pela necessidade de garantir, em todas as circunstâncias, a liberdade (pondo fim à opressão e constrangimento individual extremos), a segurança (afastando o risco de violação da integridade física ou morte violenta) e a defesa da propriedade (precavendo a penúria e assegurando a reprodução da força de trabalho e da capacidade de consumo), como os valores essenciais de uma sociedade democrática.
Mudando de estatuto, os conflitos prosseguiram, naturalmente. Mas de então para cá, o capitalismo aprimorou os mecanismos ideológicos de resolução dos diferendos e de configuração da dissidência, que nunca mais atingiram os patamares disruptores de outros tempos. Os adversários – agora convertidos em queridos inimigos! – passaram a ser sujeitos a várias modalidades de inclusão (ou melhor, conformação) na ordem estabelecida. Do confronto direto rapidamente se passa à desvalorização, descredibilização ou ocultação mediática dos oponentes, remetendo para a irrelevância ou para o puro e simples ostracismo todas as manifestações de contestação ao statu quo. Esvaziada enquanto ameaça, a dissidência é sistemicamente englobada na normalidade democrática e aproveitada para a própria reprodução do sistema que lhe deu origem. Acólitos entusiastas da ortodoxia neoliberal, o atual executivo português e as correntes políticas e ideológicas que o suportam têm multiplicado os exemplos de tal tipo de procedimento. Escolhemos três situações para ilustrar esta forma de atuação, que designaremos por queridos inimigos indigentes, queridos inimigos trabalhadores e queridos inimigos comunistas.
Encarando, na melhor das hipóteses, a pobreza como uma fatalidade natural e, na pior, como o resultado do desleixo e da falta de empenho daqueles que sofrem os seus efeitos, os nossos governantes têm visto o fenómeno da penúria sob uma dupla perspetiva: por um lado, o fantasma das classes perigosas, dos descamisados que pouco têm a perder na defesa de uma sociedade que os exclui, alimenta uma indústria assistencialista que, acudindo às necessidades mais urgentes, perpetua uma menoridade social e um círculo vicioso de miséria e de dependência. Assim considerada, a pobreza é um estado – é-se pobre – e não uma condição – está-se pobre – realidade transitória e reversível se para tal forem tomadas as medidas necessárias. É, por outro lado, um importante negócio que permite lucrar com a desgraça alheia. A investigação feita por Cláudia Joaquim, economista do Ministério da Solidariedade e Segurança Social, a partir de dados do próprio Instituto de Segurança Social, que o Público divulgou no passado mês de fevereiro, é simultaneamente reveladora e chocante. Concluem-se coisas como esta: “Casal com dois filhos recebe no máximo 374 euros de RSI. Uma IPSS pode receber até 600 pela mesma família” (Público, 15/2/2015). Em causa estão as perto de 50 mil refeições diárias que o Estado contratualiza com as instituições de solidariedade social por um montante que é quase o dobro do valor mensal previsto pela Segurança Social para o que considera ser necessário para prover às necessidades básicas de uma família carenciada. Esta medida, incluída no Programa de Emergência Social lançado em 2011 pelo Governo PSD/CDS-PP, subtrai assim da ajuda direta aos mais necessitados uma importância que lhes asseguraria decerto uma mais decente sustentação, para alimentar interesses económicos espúrios e convenientemente dissimulados. Será esta, sem dúvida, a razão do orgulho com que o ministro da Segurança Social, Mota Soares, se manifestou no último debate parlamentar sobre a pobreza, em fevereiro último, aludindo ao facto da Rede Solidária de Cantinas Sociais ter aumentado de 60 para 850.
Diga-se de passagem que este aumento vai a par com a brutal diminuição dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção, que passou dos 526 mil em 2010 para pouco mais de 210 mil em 2014, de crianças a receber o Abono de Família, com perto de 2 milhões em 2010 para menos de 1 milhão e 200 mil em 2014, ou de idosos a receber o Complemento Solidário, que em 2010 eram perto de 250 mil e que em 2014 são cerca de 171 mil. Isto quando a taxa oficial de desemprego passou dos 9,5% em 2010 para os 13,4% em 2014 (cerca de 20% segundo os cálculos insuspeitos do FMI, num relatório publicado em janeiro deste ano que contabiliza todos os que desistiram já de procurar trabalho ou aqueles que apenas conseguem ocupações temporárias e não contando com os que emigram) e a pobreza atinge 19,5% da população, isto é, quase dois milhões de pessoas com rendimentos inferiores ao que é considerado o limiar da pobreza e que corresponde a 411 euros mensais (nível de pobreza análogo ao registado no início do século), a partir dos dados do INE. Como gritou a deputada conservadora Andrea Fabra no Congresso espanhol quando Mariano Rajoi anunciava um novo corte nos subsídios de desemprego, “Que se fodam!”. Na mesma altura em que trinta e três das trinta e cinco maiores empresas espanholas usam os paraísos fiscais para fugir ao fisco ou quando o património das famílias mais ricas de Espanha cresceu 67% desde que o PP chegou ao poder (cf. Renaud Lambert, “Podemos, o partido que está a agitar Espanha”, Le Monde Diplomatique, ed. port., janeiro 2015). São os queridos inimigos indigentes.
A luta dos funcionários da TAP contra a privatização da empresa no final do ano passado redundou na mais descarada manobra de instrumentalização dos trabalhadores e desrespeito pelas normas constitucionais alguma vez tentada por um Governo do nosso regime democrático. Não só o secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Ribeiro, e o ministro da Economia, Pires de Lima, assinaram um acordo com estruturas sindicais representativas apenas de uma minoria dos implicados, como tentaram chantagear os mais de 70% dos trabalhadores que recusaram as negociações e mantiveram a contestação com cláusulas que supostamente só beneficiariam aqueles que se vinculassem ao documento. O esquema mafioso incluía uma promessa tão fundamental como a da proibição de despedimentos coletivos por 30 meses ou enquanto o Estado for acionista da empresa (pelo menos por dois anos será detentor de 34% do capital). Isso mesmo foi reiterado publicamente no canal televisivo TVI por Pires de Lima, quando afirmou sem qualquer pudor, “Não podemos estender esse acordo a sindicatos que não se quiseram sentar à mesa e que não assinaram o acordo de paz social relativo a esta privatização.” (emissão de 15 de janeiro), ou, no mesmo dia, por Sérgio Ribeiro, desta vez na SIC, com a cândida declaração, “Não consigo compreender como é que estenderíamos proteções a quem não está neste acordo, a quem não aceitou sentar-se connosco.” Para além de violar o princípio constitucional da igualdade, bem como as normas constantes na Lei Geral do Trabalho, esta manipulação rasca pretendia consagrar na lei as sub-reptícias pressões, castigos e benesses que ocorrem diariamente no mundo laboral (e não só!), com o claro intuito de dividir os sindicatos obedientes e os sindicatos desobedientes, os trabalhadores “bons” e os trabalhadores “maus”, atitude vingativa e opressora a fazer lembrar por demais outros tempos e outros governantes. Como disse o jornalista Manuel Carvalho na sua habitual crónica no Público, “Querendo perpetuar o seu poder para lá da privatização, o Governo dispunha-se a fazê-lo sob os ditames de um paternalismo bafiento que confere ao Estado o direito de puxar as orelhinhas aos que ousam pagar quotas a sindicatos incorretos. Como outrora com os priores da paróquia, indulgências só seriam concedidas à parte do rebanho que se portasse bem.” (Público, 18/1/2015). Apesar do recuo que a lei impôs, o recado estava dado. O braço de ferro entre a greve e a requisição civil aí está para o comprovar. Estes são os queridos inimigos trabalhadores.
Um protagonista, Alexandre Soares dos Santos. Este destacado dirigente económico, assumiu sempre um lugar preponderante na disputa ideológica em Portugal, quer pelas frequentes intervenções públicas sobre a política nacional, quer pela participação cívica que promove através das publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos. É também dos homens mais ricos de Portugal (segundo a revista Forbes, a sua fortuna foi avaliada em 2014 em cerca de 1,6 mil milhões de euros, logo atrás de Américo Amorim e Belmiro de Azevedo), sendo a sua família aquela que detém a mais valiosa carteira acionista do país (cf. Francisco Louçã, João Teixeira Lopes e Jorge Costa, Os Burgueses, Lisboa, Bertrand, 2014, pp. 75-78). Não se livra, no entanto, da fama (e proveito!) de práticas laborais, comerciais e fiscais assentes numa postura ética mais do que duvidosa. Da fuga aos impostos em Portugal pela deslocalização da sede social do grupo para a Holanda (alegando que se tratou tão-só de um ato de boa gestão, já que “Acumular o máximo e contribuir o mínimo é a obrigação de qualquer administrador competente a servir os «seus» acionistas.”), aos abusos sobre empregados (traduzido nas escassíssimas reuniões com a estrutura sindical ou nas atitudes de agressivo paternalismo subjacente a declarações como a de que os problemas sociais não estão nos baixos salários mas no “elevado desconhecimento dos mais elementares princípios da gestão de um orçamento doméstico” [I, 4/8/2011]) e nas manobras dilatórias de pagamento aos fornecedores (que chegam a representar 700 milhões de euros de liquidez permanente a custo zero, para além de exigência de descontos especiais em determinadas épocas do ano, nomeadamente no Natal), de tudo um pouco é acusada a gestão de Soares dos Santos. Mas talvez o exemplo mais concludente das práticas deste magnata tenha sido a campanha do 1º de Maio de 2012. Nesta ocasião, Soares dos Santos fez um autêntico “assalto ideológico” ao Dia do Trabalhador, alegando que este devia ser precisamente um dia para trabalhar, nem que para isso tivesse que aliciar os seus empregados com o triplo da remuneração habitual e um dia de folga. Esta gigantesca operação de marketing comercial visou sobretudo mostrar quem manda, provando que o Pingo Doce tem até poder para “comprar” o Dia do Trabalhador.
É este mesmo capitalista português que, em entrevista ao jornal I e assumindo-se como “democrata cristão convicto” – “um movimento com origem na CDU alemã de Konrad Adenauer”, como acrescenta – faz a seguinte declaração: “Não temos democracia cristã, não temos social-democracia, não temos socialismo. A única coisa séria que existe em Portugal é o Partido Comunista ortodoxo português. Mas pelo menos sei quem são. E nalgumas câmaras deste país são até os melhores.” (I, 17/1/2015). Esta declaração é um autêntico embuste. Não só pelo evidente desrespeito que lhe merecem as mais ténues ideias de esquerda, como pela sua atitude pesporrente e prática exploradora que os exemplos anteriormente aduzidos demonstram à saciedade. Ao contrário do que parece, não estamos aqui perante nenhuma espécie de elogio. Trata-se antes de um autêntico beijo da morte que, remetendo o PCP para a galeria das “curiosidades” históricas, o pretende transformar numa força política irrelevante e, por isso, inofensiva. Encaram-se desta forma os queridos inimigos comunistas, a quem se desculpam alguns dislates, mas a quem, no final, se afaga a cabeça, na certeza de que daqui nenhum perigo virá. A eficácia da máquina ideológica capitalista reduz à insignificância aqueles que necessita de manter politicamente em “baixa intensidade” – e, na verdade, retirando-lhes qualquer possibilidade de acederem ao poder – para dar a ilusão do respeito pela pluralidade de opiniões e pelo espírito democrático. O apreço proclamado não é mais que a ante câmara do ostracismo e do apagamento cívico.
Ora, como nos demonstrou há muitos anos o comunista italiano Antonio Gramsci, a luta política por uma outra ordem das coisas passa pela denúncia permanente da “hegemonia” ideológica do poder que legitima a dominação dos dominadores aos olhos dos próprios dominados.
Hugo Fernandez