Erigido em pensamento único, o neoliberalismo aceita mal o diferente e mais ainda o divergente. Seguindo a velha máxima de outros totalitarismos de que “quem não está connosco está contra nós”, remete a política (precisamente no sentido clássico que lhe deu a Grécia Antiga, já lá vão mais de três mil anos, de governo da polis) para o “caixote do lixo da história”, escudando as suas opções programáticas e ideológicas numa falsa tecnicidade económico-financeira. Governando os países a partir de folhas de cálculo, as decisões aparecem como indiscutíveis e inevitáveis, descartando todas as alternativas e reduzindo o universo das possibilidades (a política assume-se, como se sabe, como a arte do possível) ao horizonte limitado dos interesses de fação. Tudo o resto é apodado de leviano e irresponsável.
Ao elegerem o Syryza, os gregos deram uma lição de democracia (também no sentido clássico de “poder do povo”) a uma Europa imersa na doxa neoliberal. As eleições do passado dia 25 de janeiro foram uma autêntica “pedrada no charco” nas águas turvas e lamacentas de uma União Europeia moribunda e enfeudada à lógica predatória da maximização dos lucros privados à custa da exploração despudorada dos seus cidadãos, lógica que apenas tem levado a um brutal aumento das desigualdades e das injustiças sociais. Apesar de todo o tipo de manobras e chantagens feitas sobre os eleitores gregos, estes mantiveram-se firmes e demonstraram uma dignidade de que poucos se poderão gabar (basta ver a reação das autoridades portuguesas). A Grécia não se encontra apenas numa grave crise económica, está num estado de verdadeira catástrofe humanitária. O desemprego atinge 25% da população ativa (65% entre os jovens), pagam-se salários de 350 euros (em 2010 o salário mínimo era de 750), o subsídio de desemprego dura apenas 3 meses (após o que também se perde o acesso aos cuidados públicos de saúde, bem como a outros apoios sociais), a pobreza anda perto dos 40% da população, o PIB caiu 25% e a dívida externa continua a crescer, situando-se nos 177% do PIB grego. Perante este cenário de emergência nacional, o Syryza tomou uma posição perfeitamente sensata e responsável: rejeitar a continuação da espiral austeritária imposta pelos agiotas internacionais e restantes parceiros europeus e tentar salvar os próprios gregos do abismo, procurando revitalizar a economia nacional. Alguém poderá contestar a justeza deste objetivo?
Recorde-se que do montante total da dívida grega, que ascende a 307 mil milhões de euros, apenas 53 mil milhões são devidos aos mercados, sendo o restante de entidades institucionais, sobretudo europeias (a parte do FMI não ultrapassa os 32 mil milhões) e, portanto, suscetíveis de negociação e de revisão das políticas até agora dominantes na União Europeia. Por exemplo, na reforma do Tratado Orçamental e na redefinição do papel orçamental (e não só monetário) do BCE no sentido daquilo que fez o Governo dos EUA que, usando os recursos financeiros da Reserva Federal, conseguiu recuperar a economia americana e ultrapassar a recessão.
Para Viriato Soromenho-Marques a atual construção europeia tem sobretudo que responder a uma questão fundamental: “por que razão, depois de cinco anos de austeridade, a dívida pública continua a aumentar nos países intervencionados, e a deflação se estende como um manto gelado por toda a Europa?” (Visão, 29/1/2015). Percebe-se que o atual estado de coisas mais não é do que um mecanismo de poder induzido pelo pensamento hegemónico que, através da desorganização dos aparelhos produtivos nacionais, da destruição dos direitos civilizacionais que a Europa persegue desde há duzentos anos e do incremento da anomia social e do desespero individual, tem em vista a extorsão de mais-valias que apenas beneficiam a lógica especulativa dos grandes grupos financeiros e condenam ad eternum os países devedores a uma situação de miséria e subserviência. Para quê manter esta situação, ou melhor, para benefício de quem? É que, pela lógica das coisas, todo o credor deveria estar interessado em que o devedor tenha condições para fazer face aos seus compromissos e não seja asfixiado por constrangimentos que agravam constantemente a sua situação e impedem o pagamento da dívida. Por isso, sejamos claros; não é o retorno financeiro que se busca, mas a sujeição a lógicas de exploração extremas e à consequente subordinação aos poderes fáticos da ortodoxia neoliberal.
Quando Passos Coelho declara aos jornalistas, na Universidade Católica de Lisboa, logo no dia seguinte às eleições na Grécia, que era um “conto de crianças” a ideia de que “é possível que um país, por exemplo, não queira assumir os seus compromissos, não pagar as suas dívidas, querer aumentar os salários, baixar os impostos e ainda ter a obrigação de, nos seus parceiros, garantir o financiamento sem contrapartidas”, mais não faz do que perpetuar o enorme engodo da atual ordem europeia, colocando-se simultaneamente no reverente papel do bom aluno dos poderes instituídos. Pelo contrário, só alguém que vive numa espécie de País das Maravilhas, como o nosso primeiro-ministro, pode acreditar que Portugal está isento de problemas idênticos aos da Grécia e não caminha a passos largos para algo semelhante ao colapso grego. A perceção desta realidade é, aliás, crescente na sociedade portuguesa. Até o insuspeitíssimo Luís Amado escreveu, na sua habitual crónica na revista Visão (29/1/2015), que “No deserto político em que a Europa se transformou, asfixiada pela burocracia e pelo medo, Tsipras [líder do Syriza e atual chefe do Governo grego] é, sem dúvida, uma figura inspiradora, um líder carismático que exibe coragem, energia e ambição”.
Em 2009, 1% dos gregos detinha 48,6% da riqueza nacional; em 2014, segundo o inquérito anual do banco Crédit Suisse, esse grupo de privilegiados era já detentor de 56% do património grego. Isto é o que verdadeiramente está em jogo. Será responsável manter esta situação?
Hugo Fernandez