Ao converter o que é no que deve ser, a atual ordem capitalista globalizada em “fim da história”, o que existe no que é justo, o de facto em de jure, o pensamento político conservador resolve dois problemas essenciais. Por um lado promove o conformismo e a integração social planetárias, anulando possíveis forças centrífugas e impulsos contestatários face aos interesses dominantes. Por outro lado assegura a plena legitimação do poder instituído de forma aparentemente inócua e sem fazer uso das “grandes narrativas” ideológicas que são tidas como apanágio da esquerda e dos seus projetos mais ou menos utópicos de sociedade. Fazendo passar o que é por “natural”, porque decorrente da evolução histórica que nos trouxe até aqui, a direita lança o opróbrio do “artificialismo” (na melhor das hipóteses) ou do aventureirismo (na sua versão mais extremista) sobre as forças de esquerda – afinal, quem não teme o diferente ou o desconhecido? A esquerda, pelo contrário, denunciando as iniquidades da situação presente, busca alternativas mais justas de organização social, procurando que o ser se subsuma no dever ser.
Incensar, nesta segunda década do século XXI, as virtudes do “mercado” e as maravilhas da ordem económica globalizada, proclamando inúmeras possibilidades de realização pessoal mas fazendo com que apenas uns poucos tenham realmente oportunidade de delas usufruírem, constitui um exemplo inequívoco de manipulação das consciências. O ponto de partida de cada um é convenientemente dissimulado numa narrativa meritocrática que tem tanto de ilusório como de perverso, e (cá está!) de ideológico. A direita defende a presente ordem neoliberal porque ela é o resultado da sua “visão do mundo” e a melhor garantia da defesa dos seus proventos e prerrogativas.
No que nos diz respeito, não há nada de mais ideológico do que o discurso sacrificial do atual Governo, no seu duplo propósito de punição coletiva por supostos desmandos anteriormente praticados – o “viver acima das possibilidades” – que se traduz na permanente privação e restrição dos desejos e ambições dos portugueses, e de uma proclamada redenção que, cortando com o passado, equilibre o país e nos obrigue a um viver habitualmente de má memória. Tendo conseguido consensualizar – à custa de uma intensa campanha de inculcação ideológica – a justeza do castigo infligido, acomoda-nos, afinal, num horizonte de mediocridade e pobreza, tão propício à submissão política e à exploração económica. Este destino não só se toma por inevitável, como se pretende que seja indiscutível. Vem nos do passado este tipo de crença. A 26 de maio de 1936, na comemoração dos dez anos da ditadura fascista em Portugal, também Salazar, enunciando “as grandes certezas da Revolução Nacional”, afirmava: “Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever.”
Um outro exemplo de mistificação ideológica refere-se à declaração melodramática (“até estou comovido”, afirmou) do insidioso Carlos Abreu Amorim, deputado do PSD e vice-presidente da bancada da maioria, em entrevista ao jornal Público (21/12/2014): “já não sou liberal.” Tendo passado – como confessa – toda a vida adulta a ler Hayek, Friedman, a escola de Chicago e o liberalismo político clássico, Abreu Amorim chega à conclusão de que “a lógica do liberalismo económico tem uma contradição insanável com a natureza humana. O agente económico deve ter regras fortes e devem existir instituições que forcem a sua aplicação. Caso contrário, a ganância, a prevaricação, o instinto de fuga às regras…”, resultam na crise mundial que vivemos e que adveio da “liberdade dada aos agentes económicos, sobretudo financeiros, que pura e simplesmente eles não mereciam.”. “Tem de haver mais autoridade do Estado. […] O Estado tem de ter força”, acrescenta, concluindo que “É exatamente essa constatação que me leva a dizer que já não sou liberal. E olhe que me custa dizer isto. Até estou comovido.”
Mas, afinal, de que é que o deputado está a falar? Não foram precisamente os Estados e os governos neoliberais por esse mundo fora que forçaram a adoção das políticas económicas que agora se criticam? Não foi precisamente o ímpeto desregulador e a defesa intransigente da “liberdade dos mercados” que propiciaram as atitudes mais predadoras e gananciosas de que há memória? Ou pensa-se que a financeirização da economia mundial – a chamada “economia de casino” – ou a brutal desvalorização do trabalho em prol da acumulação desmedida de lucros por parte do capital (com as deslocalizações de empresas em busca de mão de obra barata, com o disparar do desemprego e da miséria, com a disparidade de rendimentos entre trabalhadores e administradores a atingir níveis inimagináveis, potenciando, a uma escala nunca vista, o agravamento das desigualdades sociais) foram obra da patologia demencial de alguns empresários sem controlo?
Numa pequena obra publicada em 2010, Neoliberalism: a Very Short Introduction, os economistas Manfred Steger e Ravik Roy, professores da Universidade de Melbourne, apresentam o cardápio das medidas adotadas a nível internacional segundo a cartilha neoliberal e que, para os autores, se baseia num “conjunto concreto de políticas públicas expressas naquilo a que gostamos de chamar a «Fórmula D-L-P»: (1) desregulação (da economia); (2) liberalização (do comércio e da indústria); e (3) privatização (das empresas detidas pelo Estado).”, para além de medidas associadas que incluem “grandes cortes nos impostos (especialmente para as empresas e para quem tem altos rendimentos); a redução dos serviços sociais e dos programas de assistência social; […] paraísos fiscais para as empresas nacionais e estrangeiras que queiram investir em determinadas zonas económicas; novos espaços urbanos comerciais concebidos segundo os imperativos do mercado; medidas anti sindicais para aumentar a produtividade e a «flexibilidade laboral»; eliminação dos controlos dos fluxos globais financeiros e comerciais; integração regional e global das economias nacionais”, entre outras (ed. port., Introdução ao Neoliberalismo, Coimbra, Conjuntura Atual Editora, 2013, p. 35), políticas que todos podemos facilmente reconhecer na ação do atual governo.
E que dizer da “ganância”, da “prevaricação” e do “instinto de fuga às regras…” – de que falava Abreu Amorim – implícita na iniciativa promovida pelo Estado português da atribuição de vistos gold a estrangeiros endinheirados, cujo principal impulsionador foi o vice primeiro-ministro Paulo Portas? Para além de todo o tipo de desmandos que engendrou, torna cristalina a narrativa que lhe está subjacente e que Pacheco Pereira (esse sim, mais social-democrata do que liberal) tão bem expressou: “a essência é: se dá dinheiro, pode comprar tudo, mesmo esse intangível valor que é a residência em Portugal e depois a nacionalidade.” (Público, 22/11/2014).
Exemplar, esse personagem. Enquanto ministro da Defesa, no célebre negócio dos submarinos alemães, em 2004, Paulo Portas foi responsável por “ilegalidades administrativas”, negociações “opacas” que conduziram à “celebração de um contrato substancialmente diverso do adjudicado pelo Conselho de Ministros”, com a introdução de contrapartidas de valor “muitíssimo significativo” (vulgo, pagamento de luvas), que “nem sequer foi objeto de qualquer relatório de avaliação”, conforme se pode ler no despacho de arquivamento – espantoso pelo seu conteúdo incriminatório! – que encerrou o caso do ponto de vista criminal (por “impossibilidade de recolher prova documental” – sublinhe-se – como revelou o DCIAP), mas que do ponto de vista ético e político deixou claramente marcado um veredito de culpa. Como refere o jornalista Manuel Carvalho, na sua habitual rubrica “Memória futura” no jornal Público (28/12/2014), “Ele exorbitou do mandato de negociador que lhe foi atribuído, ele foi cúmplice na negociação de compensações que acabaram, via Escom, no bolso de banqueiros ou em parte incerta, ele foi responsável pela história das contrapartidas, ele é recordado por ter levado para casa centenas ou milhares de documentos quando deixou o ministério.”, isto é, ele delapidou o Estado português e não defendeu os interesses do país (recorde-se que na Alemanha, o mesmo processo levou a condenações por fraude e corrupção).
De nada serve a um outro corifeu do liberalismo, o jornalista João Miguel Tavares, insurgir-se contra o ultraliberalismo que apelida de “mera caricatura de um capitalismo selvagem que ninguém com dois dedos de testa pode defender.” (Público, 23/12/2014). É que é mesmo este o sistema que se constituiu, desde há três décadas, como o paradigma internacional de governação, defendido pela generalidade do pensamento político de direita. Pode, portanto, descansar em paz Carlos Abreu Amorim. Continua a ser um verdadeiro liberal, ainda que na sua versão neo.
Hugo Fernandez