Simples equívoco ou a mais rematada desfaçatez? É com esta sensação dúbia que lemos a declaração que Jaime Nogueira Pinto fez à revista “2” do jornal Público (15/6/14) para justificar a irrelevância (ou mesmo inexistência) política da direita durante o salazarismo: “O Salazar não queria essa gente. Quem fazia política era o Governo. Não havia partido. A União Nacional era uma coisa só para as eleições, mas o Salazar nunca lhe ligou nenhuma. Só havia o Governo, e no Governo quem definia a política era o Salazar. Os ministros eram apenas técnicos e os que tentaram ter uma palavra política não duraram muito.”, concluindo com a inconcebível afirmação de que “As únicas pessoas que tinham atividade política eram as de esquerda.” Assim, sem tirar nem pôr!
Em sentido inverso, mas igualmente iconoclasta, são as afirmações do jornalista do Expresso, Henrique Raposo que, assumindo-se de direita, considera que, para se impor, tem que ser melhor que os intelectuais de esquerda “porque trabalhamos em ambiente hostil”, dada a alegada hegemonia da esquerda nas redações dos jornais e revistas portuguesas. Para Raposo, “Escrever crónicas nos jornais, para nós, é como ser do Benfica e ir todas as semanas jogar ao estádio do Dragão.” Assim, sem mais!
Para não falar das declarações do inefável Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, para quem, com exceção dos anos de Passos Coelho, o “socialismo” sempre dominou Portugal, afirmação que, obviamente, não merece comentário.
Curioso este fenómeno de inversão da realidade e de vitimização dos carrascos (digamos assim!). No que respeita ao primeiro testemunho, estamos perante um branqueamento descarado da ditadura fascista em Portugal, procurando fazer esquecer que era uma ideologia de direita (neste caso, extrema), um aparelho fortemente repressivo, uma larga massa de apoiantes e um conjunto de quadros políticos (os “técnicos” de que fala Nogueira Pinto) e instituições (como olvidar, por exemplo, o papel da Igreja neste contexto?) que sustentavam o poder do chefe carismático, conforme se pode facilmente constatar pela leitura do último livro de Fernando Rosas, Salazar e o Poder: a arte de saber durar (Tinta da China, 2013). A cumplicidade de Nogueira Pinto com o salazarismo é, aliás, assumida com toda a naturalidade; tendo fugido do país por uma década após o golpe reacionário de 28 de setembro de 1974, este personagem não tem pejo em se definir, ainda que ironicamente, como o “fascista de serviço”.
O segundo testemunho reflete uma problemática não só mais atual, como mais complexa. As declarações a que aludimos constam do trabalho desenvolvido pelo jornalista Paulo Moura com o título “Os intelectuais de direita estão a sair do armário”, dando conta do surgimento de um conjunto de blogues, intervenções em redes sociais, artigos de opinião ou crónicas de personagens que se assumem de direita e que estão crescentemente instaladas nos meios de comunicação social. Esta tendência da nova direita intelectual, que ganhou especial notoriedade com a divulgação do jornal digital Observador (cujo publisher é o inevitável José Manuel Fernandes) e mergulha as suas raízes no seminal semanário dos anos 80 do século XX, O Independente, de Paulo Portas e José Esteves Cardoso, encontrou novo alento na sequência da publicação do livro Conservadorismo de João Pereira Coutinho (D. Quixote, 2014) no passado mês de maio.
Interventiva e descomplexada (como se houvesse razão, para quem controla o poder, de ter receios ou complexos!), esta nova direita não renega as suas origens doutrinárias. Dando mais valor à tradição do que à revolução – já que alegam que a resiliência daquela, confrontada com o “teste do tempo”, é o melhor atestado da sua superior validade (e, depreende-se, da positividade da manutenção de situações tão louváveis como a escravatura, a miséria e a fome, a opressão dos direitos e a injustiça, ou a discriminação racial ou sexual!) – considera que, a haver mudanças, estas devem ser graduais e parciais, partindo-se sempre do princípio de que o que existe é melhor (ou pelo menos nunca será tão mau) como o que virá na sequência de uma qualquer convulsão revolucionária.
Estes pressupostos éticos decorrem de uma atitude ontológica que pretende contrariar o esforço da esquerda de reinvenção da realidade – no sentido da permanente busca da melhoria da condição humana e da vida das sociedades –, rejeitando aquilo que considera ser um mero (e pretensioso) artifício da mente humana que, situando-se no horizonte mais ou menos longínquo da utopia, não passa de especulação de um punhado de radicais ressentidos. À direita basta, pelo contrário, existir e deixar que a natureza das coisas lhe dê razão. À construção abstrata e ideológica da esquerda, opõe-se a inevitabilidade e naturalidade da constatação da realidade, tal qual ela é (ou, na versão salazarenta, o que está tem muita força). Daí a declarada superioridade intelectual e moral desta última e a degenerescência e absurdo daquela. À especulação teórica impõe-se a pretensa confirmação histórica dos factos. Num curioso giro filosófico, assistimos, assim, ao confronto entre uma perspetiva idealista atribuída à esquerda e uma perspetiva realista atribuída à direita. Como se a história não fosse feita pelos Homens (mas sim determinada por qualquer entidade transcendente), as tradições não tivessem sempre um começo (e muitas delas naturalmente um fim) e as sociedades não fossem moldadas por crenças e ideais (enformados dialeticamente por essa mesma realidade). Nesse sentido, a democracia não será ela própria uma abstração?
A profunda desregulação dos mercados, a financeirização extrema da economia e a construção da nova (des)ordem globalizada que conduziram o mundo à crise que vivemos não deixaram de constituir fatores de descredibilização do pensamento de direita, dando mesmo origem a uma suposta divergência entre a corrente dos denominados neoliberais e aqueles que se consideram conservadores. Os primeiros tinham uma postura pró-ativa (revolucionária, se quisermos), perturbadora do quietismo destes últimos. Mas essa discordância não passou, a breve trecho, de uma falácia, tendo os conservadores de ontem ultrapassado todas as relutâncias e sido rapidamente seduzidos pelos cantos de sereia daquela que seria a mais ortodoxa defensora da nova ordem neoliberal – Margaret Thatcher (as resistências direitistas surgidas à ação desta personagem tiveram mais a ver com preconceitos de classe do que com desconfianças ideológicas). Havia sobretudo um postulado matricial que agradava a gregos e a troianos, imortalizado no famoso acróstico TINA – “there is no alternative”. Deixando de haver alternativas, deixou verdadeiramente de haver política, no sentido mais nobre e clássico do termo, isto é, confronto de opiniões e de projetos de sociedade diferentes. Mas esta não será uma visão determinista da vida e dos Homens? Ou pretenderão os conservadores perpetuar esquemas monolíticos de pensamento único que criticavam aos seus adversários políticos? Esta não é, justamente, a essência da liberdade? Afinal onde está a proclamada “liberdade de escolha”?
Por esta via, a direita neoliberal parece esquecer-se dos ensinamentos do velho conservador britânico Michael Oakeshott que, na sua obra clássica Rationalism in Politics and Other Essays, publicada em 1962, criticava a deriva tecnocrática que, já então, tendia a esvaziar a enorme complexidade das questões morais e políticas, substituindo-as por meras opções esquemáticas de cariz econométrico. É a própria complexidade da vida que desmente as certezas técnicas de uma taxa de inflação ou de uma meta do défice. A denunciada simplificação grosseira das soluções pré-fabricadas e deterministas da cartilha stalinista parece, afinal, não ser monopólio do pensamento de (uma certa) esquerda!
Os conservadores, que se consideram imunes à ideologia – já que dotados de uma postura eminentemente empírica e pragmática face à realidade (alegando que a legitimidade do seu pensamento advém da perenidade da experiência humana historicamente atestada pelo devir dos séculos e não de qualquer construção abstrata dessa mesma realidade) – revelam-se, pelo contrário, profundamente ideológicos na mistificação que fazem da sua posição dominante na atual (e pretérita!) ordem política e social e na conformação do pensamento hegemónico existente. Mas, como diz a propósito desta moda “realista” António Guerreiro, o mais importante “é perceber que muitos dos intelectuais que se afirmam de esquerda e falam em nome dela se converteram a essa cultura difusa da nova direita e aceitaram preencher as quotas de mediatização que esta lhe concede, aceitando um papel protocolar de «representação». Também eles glorificam o novo realismo.” (Público/Ípsilon, 20/6/2014). E isso é que é grave.
Hugo Fernandez