Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Segunda-feira, 20 de Outubro de 2014
ESTRANHO MAIO

Simples equívoco ou a mais rematada desfaçatez? É com esta sensação dúbia que lemos a declaração que Jaime Nogueira Pinto fez à revista “2” do jornal Público (15/6/14) para justificar a irrelevância (ou mesmo inexistência) política da direita durante o salazarismo: “O Salazar não queria essa gente. Quem fazia política era o Governo. Não havia partido. A União Nacional era uma coisa só para as eleições, mas o Salazar nunca lhe ligou nenhuma. Só havia o Governo, e no Governo quem definia a política era o Salazar. Os ministros eram apenas técnicos e os que tentaram ter uma palavra política não duraram muito.”, concluindo com a inconcebível afirmação de que “As únicas pessoas que tinham atividade política eram as de esquerda.” Assim, sem tirar nem pôr!

Em sentido inverso, mas igualmente iconoclasta, são as afirmações do jornalista do Expresso, Henrique Raposo que, assumindo-se de direita, considera que, para se impor, tem que ser melhor que os intelectuais de esquerda “porque trabalhamos em ambiente hostil”, dada a alegada hegemonia da esquerda nas redações dos jornais e revistas portuguesas. Para Raposo, “Escrever crónicas nos jornais, para nós, é como ser do Benfica e ir todas as semanas jogar ao estádio do Dragão.” Assim, sem mais!
Para não falar das declarações do inefável Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, para quem, com exceção dos anos de Passos Coelho, o “socialismo” sempre dominou Portugal, afirmação que, obviamente, não merece comentário.

Curioso este fenómeno de inversão da realidade e de vitimização dos carrascos (digamos assim!). No que respeita ao primeiro testemunho, estamos perante um branqueamento descarado da ditadura fascista em Portugal, procurando fazer esquecer que era uma ideologia de direita (neste caso, extrema), um aparelho fortemente repressivo, uma larga massa de apoiantes e um conjunto de quadros políticos (os “técnicos” de que fala Nogueira Pinto) e instituições (como olvidar, por exemplo, o papel da Igreja neste contexto?) que sustentavam o poder do chefe carismático, conforme se pode facilmente constatar pela leitura do último livro de Fernando Rosas, Salazar e o Poder: a arte de saber durar (Tinta da China, 2013). A cumplicidade de Nogueira Pinto com o salazarismo é, aliás, assumida com toda a naturalidade; tendo fugido do país por uma década após o golpe reacionário de 28 de setembro de 1974, este personagem não tem pejo em se definir, ainda que ironicamente, como o “fascista de serviço”. 

O segundo testemunho reflete uma problemática não só mais atual, como mais complexa. As declarações a que aludimos constam do trabalho desenvolvido pelo jornalista Paulo Moura com o título “Os intelectuais de direita estão a sair do armário”, dando conta do surgimento de um conjunto de blogues, intervenções em redes sociais, artigos de opinião ou crónicas de personagens que se assumem de direita e que estão crescentemente instaladas nos meios de comunicação social. Esta tendência da nova direita intelectual, que ganhou especial notoriedade com a divulgação do jornal digital Observador (cujo publisher é o inevitável José Manuel Fernandes) e mergulha as suas raízes no seminal semanário dos anos 80 do século XX, O Independente, de Paulo Portas e José Esteves Cardoso, encontrou novo alento na sequência da publicação do livro Conservadorismo de João Pereira Coutinho (D. Quixote, 2014) no passado mês de maio.

Interventiva e descomplexada (como se houvesse razão, para quem controla o poder, de ter receios ou complexos!), esta nova direita não renega as suas origens doutrinárias. Dando mais valor à tradição do que à revolução – já que alegam que a resiliência daquela, confrontada com o “teste do tempo”, é o melhor atestado da sua superior validade (e, depreende-se, da positividade da manutenção de situações tão louváveis como a escravatura, a miséria e a fome, a opressão dos direitos e a injustiça, ou a discriminação racial ou sexual!) – considera que, a haver mudanças, estas devem ser graduais e parciais, partindo-se sempre do princípio de que o que existe é melhor (ou pelo menos nunca será tão mau) como o que virá na sequência de uma qualquer convulsão revolucionária.

Estes pressupostos éticos decorrem de uma atitude ontológica que pretende contrariar o esforço da esquerda de reinvenção da realidade – no sentido da permanente busca da melhoria da condição humana e da vida das sociedades –, rejeitando aquilo que considera ser um mero (e pretensioso) artifício da mente humana que, situando-se no horizonte mais ou menos longínquo da utopia, não passa de especulação de um punhado de radicais ressentidos. À direita basta, pelo contrário, existir e deixar que a natureza das coisas lhe dê razão. À construção abstrata e ideológica da esquerda, opõe-se a inevitabilidade e naturalidade da constatação da realidade, tal qual ela é (ou, na versão salazarenta, o que está tem muita força). Daí a declarada superioridade intelectual e moral desta última e a degenerescência e absurdo daquela. À especulação teórica impõe-se a pretensa confirmação histórica dos factos. Num curioso giro filosófico, assistimos, assim, ao confronto entre uma perspetiva idealista atribuída à esquerda e uma perspetiva realista atribuída à direita. Como se a história não fosse feita pelos Homens (mas sim determinada por qualquer entidade transcendente), as tradições não tivessem sempre um começo (e muitas delas naturalmente um fim) e as sociedades não fossem moldadas por crenças e ideais (enformados dialeticamente por essa mesma realidade). Nesse sentido, a democracia não será ela própria uma abstração? 

A profunda desregulação dos mercados, a financeirização extrema da economia e a construção da nova (des)ordem globalizada que conduziram o mundo à crise que vivemos não deixaram de constituir fatores de descredibilização do pensamento de direita, dando mesmo origem a uma suposta divergência entre a corrente dos denominados neoliberais e aqueles que se consideram conservadores. Os primeiros tinham uma postura pró-ativa (revolucionária, se quisermos), perturbadora do quietismo destes últimos. Mas essa discordância não passou, a breve trecho, de uma falácia, tendo os conservadores de ontem ultrapassado todas as relutâncias e sido rapidamente seduzidos pelos cantos de sereia daquela que seria a mais ortodoxa defensora da nova ordem neoliberal – Margaret Thatcher (as resistências direitistas surgidas à ação desta personagem tiveram mais a ver com preconceitos de classe do que com desconfianças ideológicas). Havia sobretudo um postulado matricial que agradava a gregos e a troianos, imortalizado no famoso acróstico TINA – “there is no alternative”. Deixando de haver alternativas, deixou verdadeiramente de haver política, no sentido mais nobre e clássico do termo, isto é, confronto de opiniões e de projetos de sociedade diferentes. Mas esta não será uma visão determinista da vida e dos Homens? Ou pretenderão os conservadores perpetuar esquemas monolíticos de pensamento único que criticavam aos seus adversários políticos? Esta não é, justamente, a essência da liberdade? Afinal onde está a proclamada “liberdade de escolha”?

Por esta via, a direita neoliberal parece esquecer-se dos ensinamentos do velho conservador britânico Michael Oakeshott que, na sua obra clássica Rationalism in Politics and Other Essays, publicada em 1962, criticava a deriva tecnocrática que, já então, tendia a esvaziar a enorme complexidade das questões morais e políticas, substituindo-as por meras opções esquemáticas de cariz econométrico. É a própria complexidade da vida que desmente as certezas técnicas de uma taxa de inflação ou de uma meta do défice. A denunciada simplificação grosseira das soluções pré-fabricadas e deterministas da cartilha stalinista parece, afinal, não ser monopólio do pensamento de (uma certa) esquerda!

Os conservadores, que se consideram imunes à ideologia – já que dotados de uma postura eminentemente empírica e pragmática face à realidade (alegando que a legitimidade do seu pensamento advém da perenidade da experiência humana historicamente atestada pelo devir dos séculos e não de qualquer construção abstrata dessa mesma realidade) – revelam-se, pelo contrário, profundamente ideológicos na mistificação que fazem da sua posição dominante na atual (e pretérita!) ordem política e social e na conformação do pensamento hegemónico existente. Mas, como diz a propósito desta moda “realista” António Guerreiro, o mais importante “é perceber que muitos dos intelectuais que se afirmam de esquerda e falam em nome dela se converteram a essa cultura difusa da nova direita e aceitaram preencher as quotas de mediatização que esta lhe concede, aceitando um papel protocolar de «representação». Também eles glorificam o novo realismo.” (Público/Ípsilon, 20/6/2014). E isso é que é grave.


Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 22:56
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Novembro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
14
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30


posts recentes

Relações Luso-Nipónicas –...

INTERROGAÇÕES

A transformação digital n...

Carta Aberta ao universo ...

FACES DA DESIGUALDADE

A COMPARAÇÃO

A FUSÃO

AJUSTE DE CONTAS

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

arquivos

Novembro 2024

Outubro 2024

Setembro 2024

Agosto 2024

Junho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub