O EFEITO IDEOLÓGICO
Os Homens pensam o seu mundo e atuam de acordo com crenças paradigmáticas. Qualquer sociedade depende de um aparato lógico-concetual que a organize e lhe dê sentido. Naturalmente que o conjunto de regras e princípios que sustentam a vida social são, por sua vez, enformados por essa mesma realidade, sem a qual, aliás, dificilmente poderiam existir (ou, em todo o caso, a sua existência e inteligibilidade situar-se-iam no horizonte mais ou menos longínquo da utopia).
A sociedade de Antigo Regime (séculos XVI-XVIII) era avessa a qualquer ideia de mobilidade social. Pelo contrário, era na hierarquia dos seus corpos e ordens, sancionada pela tradição e abençoada pelo divino, que encontrava a sua razão de ser. Os direitos e privilégios de cada um dos estratos da cadeia hierárquica deviam ser clara e imediatamente reconhecidos e era nessa medida que a ordem social antiga mantinha a coerência da sua estrutura. O beneplácito régio cumpria aqui a função de distribuir benefícios e prerrogativas na remuneração dos serviços prestados à coroa, não como prémio de méritos individuais (estava longe a ideia meritocrática do liberalismo), mas como consagração dos privilégios corporativos. A denominada “qualidade de nascimento” assegurava a atribuição a quem de direito – isto é, àqueles que tinham o estatuto necessário para aceder às benesses outorgadas – de um bem, título ou função. Era essa a razão que sustentava a exclusividade social e o domínio político.
Este sistema autorreprodutivo, beneficiando sempre os mesmos (uns poucos) em detrimento de todos os outros (a generalidade da humanidade), tornou-se crescentemente inaceitável, tendo a sua contestação resultado nas revoluções liberais de finais de setecentos e durante a centúria oitocentista. Com o advento do liberalismo, acreditou-se que a “boa ordem” social assentava na igualdade de direitos e num estatuto comum de cidadania. Invertendo a lógica aristocrática-corporativa da harmonia da sociedade assente no princípio do privilégio e da distinção hierárquica, a sociedade liberal propugnava a igual consideração social e a possibilidade de todos acederem a profissões, cargos e dignidades, possibilidade que ficava apenas a depender do mérito de cada um. O protagonismo que antes era dado ao nascimento era substituído pelo princípio da meritocracia do desempenho.
O sucesso dos indivíduos (doravante entendidos enquanto sujeitos independentes, apenas irmanados pelo mesmo estatuto cívico) passou a ser medido pela capacidade de aceder a avultadas remunerações e acumular bens e fortuna. No imaginário social das sociedades contemporâneas a riqueza valorizou-se decisivamente em relação à hereditariedade. Todo o desenvolvimento e consolidação do mundo industrial foi feito com base nestas premissas ideológicas. A imagem icónica do self-made man preenchia as aspirações da generalidade da população, doravante subjugada à premência da obtenção, “a todo o custo” e “a qualquer preço” – isto é, para lá de qualquer escrúpulo ou consideração pelos seus concidadãos – do êxito propagandeado.
A emergência do mercado globalizado e do poder financeiro nas últimas décadas do século XX apenas agravou esta propensão predadora. Não só as desigualdades sociais atingiram patamares inéditos, como a lógica do the winner takes it all (jogo de “soma-zero” em que o vencedor, ficando com tudo, despoja os vencidos) cobriu a ideologia neoliberal de uma estranha capa de arcaísmo estamental. Cavando-se inevitavelmente um fosso entre o mito do sucesso dourado (de uns poucos) e as reais possibilidades de ascensão social (da generalidade da humanidade), em virtude dos inexoráveis mecanismos da exploração capitalista, dir-se-ia que, por um surpreendente (ou talvez não!) ricorsi da história, assistíamos à reconstituição de lógicas antigas de exclusivismo e privilégio.
A diferença é que, ao contrário das imputações transcendentais ou naturalistas de antanho no entendimento e organização das sociedades, agora é a riqueza tout court – a que, em princípio, ou melhor, por princípio, qualquer um pode aceder – o critério que marca a superioridade social e a dominação política. Vivemos sob a oligarquia dos possidentes, aferindo-se pelo montante das respetivas fortunas o grau de sucesso alcançado. Claro que, para os vencedores, se atingiu a ordem perfeita – o “fim da história” de que nos falava Fukuyama –, quedando-se os perdedores com o ónus do fracasso social e da culpa por não atingirem tal propósito. Esquecem-se as conexões existentes entre a riqueza e a pobreza, e de como a riqueza alcançada por uns engendra necessariamente a pobreza de todos os outros (“quantos pobres são necessários para fazer um rico?”, demandava Almeida Garrett na sua obra Viagens na Minha Terra).
Transformou-se o discurso meritocrático em sentença de vida, não se tendo em conta a enorme disparidade dos contextos reais da existência das pessoas. Subsumindo-se a diferença de oportunidades num discurso moralista de falta de iniciativa e de empenho – a “preguiça” e o “desleixo” que sempre se atribuem aos mais pobres – esquecem-se as condições efetivas em que o talento pode medrar. Falamos, por exemplo, da qualidade da subsistência e da instrução recebidas, das zonas de habitação e dos meios frequentados, dos contactos e interações sociais e profissionais a que se tem acesso, tudo fatores potenciadores de aptidões naturais sem os quais dificilmente aquelas se podem manifestar, estiolando imersas em necessidades mais prementes da sobrevivência quotidiana. A ideia meritocrática nascida do “paradigma igualitário” liberal tornou-se, afinal, uma miragem para a esmagadora maioria da população, em muitos casos não por ausência de virtudes ou talentos intrínsecos, mas por falta de oportunidades para os desenvolver. A igualdade não passou (ainda!) por aqui.
Eppur si muove! Como constata com uma simplicidade desarmante o afamado filósofo esloveno Slavoj Zizek, “É assim que o capitalismo funciona, é esta a eficácia da ideologia capitalista: até mesmo quando sabemos como as coisas são continuamos a agir baseando-nos em falsas crenças.” (Viver no Fim dos Tempos, Lisboa, Relógio D’Água, 2011, p. 173).
Hugo Fernandez