Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Terça-feira, 15 de Abril de 2014
LEI DA SELVA

 

Desde as suas origens seiscentistas (por exemplo, na figura de um John Locke) que um credo profundamente individualista esteve no centro do pensamento liberal. Este credo contrapunha-se ao organicismo da sociedade aristocrática-corporativa de Antigo Regime e permitiu a construção de uma nova ordem social baseada num contratualismo liberto dos constrangimentos estamentais de antanho. A sociedade nascida das revoluções liberais era entendida como o resultado de uma agregação voluntária de indivíduos igualitariamente considerados, que regulavam as suas condutas através de preceitos legais (e morais) destinados sobretudo a assegurar a defesa da propriedade privada, a segurança particular e a liberdade de cada um face aos seus semelhantes. Contudo, este individualismo possessivo (na conhecida expressão do sociólogo canadiano C. B. Macpherson) desde logo se viu confrontado com a indispensável regulação da existência coletiva e da administração da “coisa pública”. Os conflitos advindos decorriam, sobretudo, da distribuição muito desigual dos bens (cada vez mais escassos) e, consequentemente, da diferenciação dos direitos dos indivíduos, destruindo a ilusão supra classista da cidadania liberal. Lutou-se, então, pela diminuição das injustiças e discriminações existentes e pela necessidade da sociedade assegurar, enquanto tal, um nível mínimo de distribuição de recursos e de coesão entre os seus membros, assente na ideia de “bem-comum”, sem a qual aliás, ela mesma dificilmente poderia sobreviver. Tratava-se da emergência do imperativo democrático no seio do liberalismo (parecendo confirmar a asserção do historiador germânico Th. Schieder de que os liberais tinham sido “revolucionários contra vontade”). Esta é uma brevíssima sinopse do que aconteceu nos últimos duzentos anos.

Claro que, ao longo deste tempo, a ideia original também foi fazendo o seu caminho, consolidando-se a aspiração da autonomia do indivíduo face à sociedade, baseada num encadeamento de três preceitos essenciais: o de que o percurso de vida de cada um é da sua exclusiva responsabilidade, isto é, de que não existem constrangimentos sociais que possam condicionar (pelo menos em algum grau) os êxitos ou fracassos da trajetória seguida, o de que o indivíduo nada deve, portanto, esperar da sociedade, pelo que esta apenas deve ser regulada (ou melhor, desregulada!) em benefício dos interesses individuais e, consequentemente, o de que cada um nada deve a essa mesma sociedade, que despreza e cuja existência dispensa. Entramos no domínio ideológico do que se denominou “neoliberalismo”. Ficou tristemente célebre a declaração de Margaret Thatcher, em 1987, de que “there is no such thing as society” (“essa coisa de sociedade não existe”). Prevaleciam, de forma inexorável, os interesses privados contra a utilidade pública. As sociedades tenderam a atomizar-se e os conflitos sociais recrudesceram. Este é o panorama do que se tem passado nos últimos 30 anos da nossa história.

Cristalizando-se este pensamento numa doxa incessante, hegemónica e de dimensões planetárias, estamos agora mais próximos da situação que o filósofo inglês Thomas Hobbes caracterizava como “bellum omnia omnes” (“guerra de todos contra todos”), própria de um estado de natureza – ou seja, pré-societal – em que os Homens se comportam uns com os outros como feras (“homo homini lupus”, expressão latina que significa “o homem é o lobo do homem”) do que da asserção aristotélica do ser humano enquanto “zoon politikon” (animal político). Recordemos que, para o filósofo estagirita, o que diferencia o Homem dos outros animais é precisamente essa sua propensão para a vida em sociedade e uma profunda convicção de que só no seu seio é que os seres humanos atingem a plenitude da sua realização ontológica. Aristóteles recorda que só imerso na polis é que o Homem adquire a linguagem e o raciocínio, bem como as noções do bem e do mal, do justo e do injusto. De tudo aquilo, afinal, que nos distingue da bestialidade e que constitui a marca decisiva da civilização.

A total falta de escrúpulos e o completo desprezo pelos outros, a ganância despudorada, o compadrio larvar e a corrupção mais abjeta, a mediocridade alçada a “pose de Estado”, o “cada um por si”, enfim, a flagrante ausência de dimensão humana do mundo contemporâneo, são realidades indisfarçáveis. O nosso país é bem o retrato do estado de barbárie em que vivemos. Assistimos, com o atual governo, ao maior ataque à sobrevivência nacional desde a instauração da democracia em Portugal. Estamos a ser retalhados, vendidos, empobrecidos, esmagados, para que o interesse de uns poucos seja satisfeito. Nunca, desde o 25 de Abril, as desigualdades sociais atingiram níveis tão díspares e escandalosos. Nunca, em tempo de paz, um país foi tão rapidamente levado à ruína, tudo em nome de negócios privados, tantos deles estrangeiros. O bem comum está a ser delapidado e a própria sobrevivência da nossa sociedade está a ser posta em causa. Porque é de Portugal que se trata, da sua história e das suas gentes e, como diz José Pacheco Pereira, o país é “o povo, nós todos, o único «nós» que tem sentido.” (Público, 5/4/2014). Convém lembrá-lo, neste quadragésimo aniversário da revolução libertadora.

Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 02:12
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