Desde as suas origens seiscentistas (por exemplo, na figura de um John Locke) que um credo profundamente individualista esteve no centro do pensamento liberal. Este credo contrapunha-se ao organicismo da sociedade aristocrática-corporativa de Antigo Regime e permitiu a construção de uma nova ordem social baseada num contratualismo liberto dos constrangimentos estamentais de antanho. A sociedade nascida das revoluções liberais era entendida como o resultado de uma agregação voluntária de indivíduos igualitariamente considerados, que regulavam as suas condutas através de preceitos legais (e morais) destinados sobretudo a assegurar a defesa da propriedade privada, a segurança particular e a liberdade de cada um face aos seus semelhantes. Contudo, este individualismo possessivo (na conhecida expressão do sociólogo canadiano C. B. Macpherson) desde logo se viu confrontado com a indispensável regulação da existência coletiva e da administração da “coisa pública”. Os conflitos advindos decorriam, sobretudo, da distribuição muito desigual dos bens (cada vez mais escassos) e, consequentemente, da diferenciação dos direitos dos indivíduos, destruindo a ilusão supra classista da cidadania liberal. Lutou-se, então, pela diminuição das injustiças e discriminações existentes e pela necessidade da sociedade assegurar, enquanto tal, um nível mínimo de distribuição de recursos e de coesão entre os seus membros, assente na ideia de “bem-comum”, sem a qual aliás, ela mesma dificilmente poderia sobreviver. Tratava-se da emergência do imperativo democrático no seio do liberalismo (parecendo confirmar a asserção do historiador germânico Th. Schieder de que os liberais tinham sido “revolucionários contra vontade”). Esta é uma brevíssima sinopse do que aconteceu nos últimos duzentos anos.
Claro que, ao longo deste tempo, a ideia original também foi fazendo o seu caminho, consolidando-se a aspiração da autonomia do indivíduo face à sociedade, baseada num encadeamento de três preceitos essenciais: o de que o percurso de vida de cada um é da sua exclusiva responsabilidade, isto é, de que não existem constrangimentos sociais que possam condicionar (pelo menos em algum grau) os êxitos ou fracassos da trajetória seguida, o de que o indivíduo nada deve, portanto, esperar da sociedade, pelo que esta apenas deve ser regulada (ou melhor, desregulada!) em benefício dos interesses individuais e, consequentemente, o de que cada um nada deve a essa mesma sociedade, que despreza e cuja existência dispensa. Entramos no domínio ideológico do que se denominou “neoliberalismo”. Ficou tristemente célebre a declaração de Margaret Thatcher, em 1987, de que “there is no such thing as society” (“essa coisa de sociedade não existe”). Prevaleciam, de forma inexorável, os interesses privados contra a utilidade pública. As sociedades tenderam a atomizar-se e os conflitos sociais recrudesceram. Este é o panorama do que se tem passado nos últimos 30 anos da nossa história.
Cristalizando-se este pensamento numa doxa incessante, hegemónica e de dimensões planetárias, estamos agora mais próximos da situação que o filósofo inglês Thomas Hobbes caracterizava como “bellum omnia omnes” (“guerra de todos contra todos”), própria de um estado de natureza – ou seja, pré-societal – em que os Homens se comportam uns com os outros como feras (“homo homini lupus”, expressão latina que significa “o homem é o lobo do homem”) do que da asserção aristotélica do ser humano enquanto “zoon politikon” (animal político). Recordemos que, para o filósofo estagirita, o que diferencia o Homem dos outros animais é precisamente essa sua propensão para a vida em sociedade e uma profunda convicção de que só no seu seio é que os seres humanos atingem a plenitude da sua realização ontológica. Aristóteles recorda que só imerso na polis é que o Homem adquire a linguagem e o raciocínio, bem como as noções do bem e do mal, do justo e do injusto. De tudo aquilo, afinal, que nos distingue da bestialidade e que constitui a marca decisiva da civilização.
A total falta de escrúpulos e o completo desprezo pelos outros, a ganância despudorada, o compadrio larvar e a corrupção mais abjeta, a mediocridade alçada a “pose de Estado”, o “cada um por si”, enfim, a flagrante ausência de dimensão humana do mundo contemporâneo, são realidades indisfarçáveis. O nosso país é bem o retrato do estado de barbárie em que vivemos. Assistimos, com o atual governo, ao maior ataque à sobrevivência nacional desde a instauração da democracia em Portugal. Estamos a ser retalhados, vendidos, empobrecidos, esmagados, para que o interesse de uns poucos seja satisfeito. Nunca, desde o 25 de Abril, as desigualdades sociais atingiram níveis tão díspares e escandalosos. Nunca, em tempo de paz, um país foi tão rapidamente levado à ruína, tudo em nome de negócios privados, tantos deles estrangeiros. O bem comum está a ser delapidado e a própria sobrevivência da nossa sociedade está a ser posta em causa. Porque é de Portugal que se trata, da sua história e das suas gentes e, como diz José Pacheco Pereira, o país é “o povo, nós todos, o único «nós» que tem sentido.” (Público, 5/4/2014). Convém lembrá-lo, neste quadragésimo aniversário da revolução libertadora.
Hugo Fernandez