A expressão, no original italiano, é de António Gramsci, em texto escrito em 1917. Para o dirigente comunista sardo era impensável a vida humana desligada da sociedade e da necessidade de intervenção cidadã, já que os Homens não podem permanecer estranhos à cidade e demitir-se da cidadania. “A indiferença é o peso morto da história”, dizia, enfatizando o ónus brutal da passividade “daqueles com que não se pode contar”. A indiferença e o absentismo das multidões dá azo, por outro lado, a todo o tipo de maquinações e à possibilidade da manipulação por parte de uns poucos do querer coletivo. Nestas circunstâncias, os Homens deixarão de ser atores para se tornarem meros figurantes de uma trama que não controlam e que inevitavelmente se desenrolará em seu prejuízo. Todos, quem se interessou e quem não quis saber, quem foi ativo e quem se mostrou indiferente, quem lutou e quem não lutou, serão afetados. Será então tarde de mais.
As piores situações da história da humanidade decorreram, segundo um aforismo célebre, “do consentimento de muitos, da convicção de alguns e do assentimento de quase todos”. Mas uma coisa é certa; nunca os indiferentes poderão reclamar inocência. Pelo contrário. Na sua passividade cúmplice, revelar-se-ão os principais culpados das situações de degradação social advindas e serão os verdadeiros carrascos dos que se sacrificaram para as impedir. Isto mesmo já sabia, no século XVI, o filósofo francês Étienne de la Boetie, denunciando a conivência das populações com os regimes tirânicos, a fácil aceitação do que ele denominou “servidão voluntária”. Também nos inícios do século XX, o sociólogo alemão Max Weber afirmava, com notável perspicácia, que “neutro é quem já se decidiu pelo mais forte”.
Como é possível ser “neutro” perante a atual realidade portuguesa? Como é possível não querer saber? Como é possível ser indiferente quando as mais recentes estatísticas oficiais da União Europeia (Eurostat) indicam que um quarto dos cidadãos portugueses vive na pobreza e em situação de exclusão social (25,3%, ou seja 2,7 milhões de pessoas) e a classe média está num processo acelerado de empobrecimento? Como se pode esquecer que o desemprego atinge cerca de um milhão de portugueses e 200 mil já foram forçados a emigrar? Como contemporizar com uma perda brutal do rendimento das famílias portuguesas que, segundo o Instituto Nacional de Estatística, recuou para níveis do início do século XXI? Como aceitar que cerca de meio milhão de crianças tenha perdido o abono de família e que, segundo o mesmo estudo sobre o Índice de Bem-Estar do INE, a percentagem de pessoas com mais de 15 anos a viverem em agregados familiares em que a totalidade dos seus elementos em idade ativa estão desempregados tenha tido um agravamento de 60% nos últimos anos?
Principalmente, como tolerar o que nos revela o Relatório de Ultra Riqueza no Mundo 2013 do banco suíço UBS, segundo o qual, em Portugal, há mais 85 milionários – indivíduos com fortunas superiores a 30 milhões de dólares (perto de 22,4 milhões de euros) – do que em 2012 (correspondendo a um acréscimo de 10,8%) e que os 870 milionários portugueses atualmente existentes detêm, em conjunto, uma fortuna avaliada em 100 mil milhões de dólares (75 mil milhões de euros), valor que representa um aumento de 11,1% em relação a 2012 (Público, 8/11/2013)? Note-se que, segundo este estudo, o crescimento do número de multimilionários em Portugal, um dos países mais flagelados pela crise na Europa, foi maior do que a média europeia (8,7%), sendo o valor das suas fortunas também superior ao da média europeia (10,4%). Como é isto possível?! Como pode tal suceder num país intervencionado pela troika internacional e a braços com uma das piores situações económicas da sua história? Como se podem deixar extremar desta maneira as desigualdades sociais no nosso país? Acusando o atual governo de estar a transformar Portugal num “terreno salgado e estéril”, José Pacheco Pereira dirá mesmo “Pode-se-lhes perdoar tudo, os erros de política, a incompetência, o amiguismo, uma parte da corrupção dos grandes e dos médios, menos isto, este salgar da terra que pisamos, apenas para obter uns ganhos pequeninos no presente e com o custo de enormes estragos no futuro.” (Público, 30/11/2013).
Porque a solidariedade humana e a empatia com os outros se constitui como uma efetiva força moral, no escrito de 1917 anteriormente referido, António Gramsci dirá: “Chi vive veramente non può non essere cittadino, e parteggiare. Indifferenza è abulia, è parassitismo, è vigliaccheria, non è vita. [...] Vivo, sono partigiano. Perciò odio chi non parteggia, odio gli indifferenti.” São verdades que não necessitam de tradução. Verdades antigas, a recordar-nos a famosa máxima do filósofo ateniense Platão, “o castigo para quem não acredita na política e não se interessa por ela é ser governado por gente de pior qualidade”.
Hugo Fernandez