Depressa o poder político as procurou esquecer. Mas as eleições autárquicas de setembro último constituíram um acontecimento decisivo de que é impossível não tirar consequências. Toda a retórica desvalorizadora – a bem dizer, em desespero de causa – dos membros do Governo e da coligação que o apoia, não consegue esconder a “lufada de ar fresco” (palavras de Pacheco Pereira, em entrevista ao Público) que estas significaram. Com efeito, para o historiador, “Ao fim de dois anos de inevitabilidade que põe em causa a política em geral e, desse ponto de vista, põe em causa a democracia, irromperam eleições que representam uma lufada de ar fresco e o retorno da liberdade e da democracia.”, concluindo que “estas eleições autárquicas foram das mais interessantes desde o 25 de Abril.” (Público, 6/10/2013). Assim, sem hesitações!
De facto, para além da enorme penalização dos partidos no poder (e que se estendeu a partidos do “sistema”, como o PS, com a perda de largas centenas de milhares de votos) as últimas eleições foram o ajuste de contas dos portugueses com o que há de pior na política nacional: a lógica aparelhista e os seus apparatchik (vide Luís Filipe Menezes, Fernando Seara, Abreu Amorim, Pedro Pinto ou Moita Flores), e toda a proliferação despudorada de sinecuras, as teias de compadrios clientelares, as quebras reiteradas de compromissos eleitorais, a banalização da imoralidade e, talvez mais importante que tudo, a tentativa de estupidificação das populações através da mentira grosseira. Esta é uma forma suprema de hipocrisia que José Gil denuncia como uma verdadeira “patologia do país”: “Ao negar-nos a possibilidade de pensar, a demência deste poder está aos poucos – cêntimo a cêntimo – a fazer desaparecer uma comunidade.” (Visão, 24/10/2013).
Por outro lado, significou a tomada de consciência cívica perante os pântanos autoritários e o desplante populista, como foi principalmente o caso da Madeira e aquilo que parece ser o começo do fim do consulado de Alberto João Jardim e, principalmente, do fenómeno sociológico e político do jardinismo. Acresce que o significativo aumento dos votos em branco e votos nulos (as abstenções nunca poderão ser consideradas, já que, não expressando uma opinião, são antes uma desistência da cidadania) representam uma clara atitude crítica face ao sistema político-partidário existente, que tem sido largamente dominado pelo PS e pelo PSD, atitude comprovada igualmente pelo êxito das candidaturas independentes, de que a cidade do Porto constituiu exemplo paradigmático. Com efeito, se somarmos os votos brancos, nulos ou em candidaturas independentes, essa percentagem ultrapassa, em muitos municípios, os votos obtidos pela generalidade dos partidos com assento parlamentar. Isto não significa uma crise de representação política, nem uma demissão cívica dos cidadãos. Pelo contrário. Significa uma vontade de participação que ultrapassa largamente o espetro partidário existente e assume formas inovadoras e, porventura, mais genuínas de “fazer política”. Porque, convenhamos, a alternativa entre Passos Coelho e António José Seguro nas eleições de 2015 (se não for antes!), é uma perspetiva profundamente confrangedora e um cenário de verdadeiro pesadelo.
As eleições autárquicas foram também um ajuste de contas com uma ditadura financeira que pretendeu relegar a política e a democracia para segundo plano. Não faz pois sentido a afirmação de Passos Coelho, “Se eu falhar, é o país que falha”. Não, não é. É ele e a sua cruzada neoliberal que falham… e para o bem de todos! Como certeiramente alegou José Pacheco Pereira na sua habitual crónica no Público (12/10/2013), o prometido “sucesso” não significará mais do que “o congelamento de um país empobrecido até aos limites aceitáveis pela União Europeia – que são muito mais elásticos do que se pensa – destinado a fornecer um mercado para o sol de verão e mão de obra barata, com enormes diferenças sociais, e governado pela burocracia de Bruxelas e pela nossa elite colaboracionista.” São, aliás, sabidos os resultados dramáticos a que nos conduziram, ao longo da nossa história, putativos salvadores da pátria e iluminados que, julgando carregar o destino coletivo, tolhem o país com o manto da sua mediocridade e mesquinhez. Todos eles, de resto, demonstraram uma indisfarçável vocação totalitária baseada em supostas “inevitabilidades”, no “caminho único” e nas “verdades inquestionáveis”, esquecendo que em democracia a pluralidade de pontos de vista exige o permanente debate das soluções, que não existem tabus, que há sempre alternativas.
A pronta menorização do significado destes resultados eleitorais e a recusa em daí tirar as devidas ilações, se pode ser reconfortante para o poder (através da conhecida – e apenas dilatória – estratégia de meter a cabeça na areia), pode igualmente ter um efeito potenciador da revolta contra o governo, se a população constatar que não há qualquer mudança das políticas seguidas e que o seu voto poderá ter sido em vão. Ninguém gosta de não ser levado a sério. A menorização das pessoas e o desprezo pela sua opinião traz sempre maus resultados. E não é a tecnocracia troikista ou os sacrossantos “mercados” que conseguirão transformar a democracia em “democratura” – conceito que, muito a propósito, o politólogo José Adelino Maltez usou para designar “uma democracia sem povo” (Diário de Notícias, 16/10/2013). É, por isso, fundamental atentar nas lúcidas palavras de José Pacheco Pereira, quando este afirma que “O bloqueio político é o maior problema de Portugal, maior do que o défice e do que a dívida” (Público, 27/10/2013).
Hugo Fernandez