O capitalismo habituou-nos, desde sempre, a este ciclo de crises e de expansão. Aconteceu assim na sequência da Grande Depressão dos anos 30, voltou a verificar-se no boom económico do pós Segunda Guerra e, novamente, na imposição da ordem globalizada neoliberal das últimas décadas do século XX, ultrapassadas que foram as aflições da crise petrolífera dos anos 70. Nos alvores do século XXI parece confirmar-se a mesma regra: à aparente debacle do sistema na sequência da crise do subprime americano em 2008, a pujança da exploração global despudorada a que estamos a assistir. Qual fénix renascida, o capitalismo teima em querer demonstrar-nos que é indestrutível e eterno, o tal “fim da história” de que nos falava Fukuyama.
Depressa esquecemos a gigantesca especulação financeira com produtos tóxicos e a crise da liquidez bancária, com a inexorável depreciação de ativos e a consequente derrocada geral do crédito. Perdoou-se o uso infame do dinheiro dos depositantes e dos fundos de pensões, desculparam-se as campanhas terroristas de crédito barato junto dos contribuintes mais desprotegidos e incautos, olvidaram-se as promessas, amplamente publicitadas, da prosperidade “fácil”. Com a conivência dos governos neoconservadores de todo o mundo, foi-nos vendida (também neste caso!) a tese de que era fundamental salvar as instituições bancárias e financeiras meliantes, sob risco de um contágio catastrófico. Mas foram as medidas tomadas para evitar esse suposto (e nunca comprovado) contágio que foram verdadeiramente catastróficas: nacionalização das dívidas privadas, destruição das finanças públicas, espiral recessiva em consequência das políticas de austeridade, empobrecimento generalizado das populações, aumento exponencial das desigualdades sociais. Responsabilidades pela situação criada nunca foram assacadas a ninguém. A impunidade (porque estamos, de facto, a falar de criminosos) compensou.
A atual fase do capitalismo fortaleceu um aspeto aparentemente contraditório. A capacidade de domínio e de sujeição de camadas crescentemente alargadas da população, arredando-as do usufruto de bens básicos e da mais elementar consideração social – situações estas que, paradoxalmente, estiveram na origem das revoluções liberais que implementaram este mesmo sistema há cerca de duzentos anos – sustenta-se no reforço da crença na sua legitimidade (aquilo que Gramsci designava “hegemonia”) e no “habitus” (Bourdieu) arreigado da obediência, mesmo na ausência de uma escalada significativa dos níveis de coerção e violência característicos de outras épocas, por parte do poder estabelecido. A que se deve esta situação?
Certamente que ao presente statu quo não é alheia uma dupla circunstância, matricial a este novo período do capitalismo. Por um lado, a absoluta subordinação da dimensão política à esfera económica e sobretudo financeira, com os governos transformados em meros capatazes dos mais inconfessáveis interesses. Estes interesses, apoderando-se dos negócios (e património) públicos para todo o tipo de traficâncias privadas, levam os países à completa dependência e as suas populações à miséria, ao mesmo tempo que se erigem em apóstolos de uma autêntica “teologia dos mercados”, transformada em via única para a salvação terrestre. Por outro, porque a dificuldade em escrutinar a sua ação, faz dos famosos e obscuros “mercados” entidades inimputáveis do ponto de vista democrático. Subvertendo-se o princípio da soberania popular – governos de tecnocratas que não são eleitos, decisões que não passam pelos mecanismos tradicionais do debate e consensualização política, recurso sistemático à mistificação ideológica e à falácia programática, erosão propositada de todas as formas de representação cívica –, é a própria democracia que é posta em causa. Estamos, assim, perante o que Boaventura de Sousa Santos denomina “fascismo social”. Daqui resulta o sentimento de impunidade dos poderosos e de desesperança do conjunto da população. Facilmente advém o isolamento, a alienação e a apatia, conducentes a um estado de total anomia societária – a “não inscrição” no real, de que nos fala José Gil.
Embora possa parecer o contrário, vivemos hoje uma fase de expansão do sistema capitalista. Os pilares em que assentou o seu desenvolvimento nas últimas décadas do século XX, estão reconstituídos: sobrefinanceirização da economia, exploração globalizada do trabalho e dos recursos naturais, acrescida acumulação capitalista (entendida no duplo sentido marxista de acumulação de capital e “libertação”/sujeição da mão de obra). A estes juntam-se os fatores de ordem política – controle dos governos e das instituições internacionais pelos grandes interesses económico-financeiros, esvaziamento da democracia e oclusão da cidadania – e os fatores de ordem social – empobrecimento das populações, concentração da riqueza e exacerbamento das desigualdades (“Àqueles que nada têm, tudo se lhes tirará, aos que já tudo têm, mais se lhes dará.”, denunciava, já na sua época, S. Tomás de Aquino) – isto é, o recuo de séculos no progresso da humanidade.
Estar-se-á a confirmar mais uma fase na evolução cíclica do capitalismo? Seguramente, embora agora as coisas possam ter um fim distinto. Porque, se até ao momento, as fases de expansão capitalista correspondiam a um acréscimo de prosperidade generalizado – ainda que, como é lógico, desigualmente distribuído –, estamos atualmente numa situação em que aquele “jogo de soma positiva” (em que todos ganhavam alguma coisa) se transformou num “jogo de soma zero” (o benefício de alguns é o prejuízo de todos os outros). Este pode constituir o fator decisivo no despoletar de uma reação anti-capitalista, no sentido de uma revolução política democrática que, no fundo, devolva a dignidade aos cidadãos e reponha a justiça social (pela distribuição equitativa dos recursos existentes e a promoção da igualdade de oportunidades) impedindo a desagregação das nossas sociedades e cumprindo, afinal, o destino da modernidade.
O que se passa na Europa é sintomático. Será que estamos a caminho do que Serge Halimi designou por “Idade Média europeia”, para se questionar, de seguida, “Será que as políticas económicas impostas pela defesa do euro são ainda compatíveis com as práticas democráticas?” (Le Monde Diplomatique, ed. port., julho de 2013). O exemplo que aduziu é por demais elucidativo: a televisão pública grega, criada para garantir a liberdade de informação e expressão após o fim da ditadura militar, foi encerrada sem autorização do Parlamento, por um governo “democrático” (pelo menos saído do sufrágio popular – o que quer que isto, atualmente, signifique) que tem como único objetivo cumprir as determinações austeritárias de Bruxelas e do Fundo Monetário Internacional. O atual governo grego alegou que este encerramento se inscrevia “no contexto dos esforços consideráveis e necessários que as autoridades estão a desenvolver para modernizar a economia grega”. A expressão “modernizar a economia grega” é, só por si, significativa. Não só a ação política se subsume na pura racionalidade económico-financeira, como esta passa a dominar todos os aspetos da vivência coletiva. A cidadania deixa, na realidade, de existir. O que, aliás, está conforme com o próprio processo de construção da União Europeia, que passou pela aprovação de projetos constitucionais à revelia da opinião pública ou mesmo rejeitados pelas populações, mas que, ainda assim, foram aprovados sem qualquer hesitação. Não admira, por isso, a participação residual dos europeus nas eleições europeias e a crescente perceção de que a proclamada União não existe e está ferida de morte por puros fatores concorrenciais e divisões mercantis insanáveis.
Persiste, por isso, a inquietante interrogação de Max Weber, em 1919: “Como é que a democracia e a liberdade podem ser mantidas a longo prazo sob as condições do capitalismo avançado?”
Hugo Fernandez