Desde sempre os pobres foram vítimas de discriminação e exclusão social. As grandes concentrações operárias da revolução industrial oitocentista faziam com que os grupos possidentes somassem à repulsa que aqueles lhes infundiam, o receio pelo seu número e aspirações. Denominavam-nas “classes perigosas”. Foi aliás a luta por condições mais justas de trabalho e de vida que, no processo histórico que decorreu entre os séculos XIX e XX, transformou situações intoleráveis em compromissos mais equitativos entre direitos e deveres. Na Europa do pós-II Guerra Mundial foi mesmo possível desenvolver mecanismos de assistência social generalizada que corporizaram o chamado Estado-providência e que reforçaram sentimentos de inclusão e pertença comunitária. Se profundas desigualdades sociais estavam longe de ser dirimidas, o reforço da solidariedade entre as várias camadas da população assegurava a todos uma subsistência digna e, para muitos, algum grau de prosperidade. Desenvolveu-se a tolerância e o respeito interclassista.
A desregulação da ordem neoliberal fez com que, nas derradeiras décadas do século XX, houvesse uma alteração radical dos padrões de vida em sociedade. A oligarquia financeira, omnipotente e omnipresente, rasgou todos os compromissos sociais existentes e, pura e simplesmente, impôs a “lei do mais forte”. A busca desenfreada do lucro máximo, mesmo que à custa da destruição das sociedades e do aumento exponencial da indigência, começou por ser apresentada sob o eufemismo de “capitalismo popular”. Depressa as veleidades acionistas de pequenos aforradores foram engolidas pela lógica implacável dos grandes interesses globalizados. Desemprego, precarização, miséria a uma escala nunca vista, foram o seu inevitável corolário. Assistiu-se então a uma curiosa inversão dos termos da tradicional luta de classes: já não eram os pobres que lutavam contra os ricos por melhores condições de vida, mas os ricos que lutavam contra os pobres por melhores condições de exploração. A iniciativa passou inteiramente para o lado dos poderosos, subsumindo qualquer possibilidade de contestação e resistência por parte dos oprimidos. À repulsa e medo iniciais dos ricos face aos pobres, adveio o absoluto desprezo e a mais cruel perseguição dos ricos aos pobres. Assistimos a uma espécie de mundo ao contrário.
Tal pecado fez a história humana recuar alguns séculos. Com efeito, o falso discurso modernista pressuposto nos prefixos pós e neo, esboroa-se na constatação das evidências passadas. Como denunciava o teólogo francês François Fénelon (1651-1715) em Aventures de Télémaque, obra de 1699 e um dos romances mais lidos na época, “il n’est plus question que d’être riche; la pauvreté est une infamie” [nada mais importa do que ser rico; a pobreza é uma infâmia]. Aliás, as suas ideias liberais sobre a política da época esbarraram no status quo existente, acabando por cair em desgraça junto do monarca Luís XIV. Meio século mais tarde, Jean-Jacques Rousseau denunciava esta mesma ânsia de estar acima dos restantes, num ímpeto simultâneo de exclusivismo egoísta e desprezo pelos outros, isto é, de ser rico no meio dos pobres (et pour cause, diríamos nós!). Na segunda parte do seu Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, de 1755, afirmava, “si l’on voit une poignée de puissants et des riches au faite des grandeurs et de la fortune, tandis que la foule rampe dans l’obscurité et dans la misère, c’est que les premiers n’estiment les choses dont ils jouissent qu’autant que les autres en sont privés, et que, sans changer d’état, ils cesseraient d’être heureux, si le peuple cessait d’être misérable.” [Se virmos um grupo de poderosos e ricos usufruindo da grandiosidade e da fortuna, enquanto a multidão rasteja na obscuridade e na miséria, é porque os primeiros não estimam as coisas de que desfrutam senão na medida em que os outros são privados delas e que, sem mudar de condição, eles deixariam de ser felizes se o povo deixasse de ser miserável.]
Na atualidade, o próprio Estado passa a ser agente de polarização social, anulando o caráter universal das normas básicas do funcionamento da sociedade (património da humanidade desde as revoluções liberais), promovendo uma enorme disparidade de rendimentos e assimetrias na distribuição da riqueza e das oportunidades e potenciando, desta forma, uma desigualdade sistémica das condições de vida (à semelhança do que acontecia nas sociedades do Antigo Regime). É toda uma agenda ideológica que está em marcha. A desigualdade social deixa de ser vista como um problema para passar a ser a matriz da nova organização societária.Quebram-se os laços comunitários em nome dos interesses individuais (tantas vezes ultramontanos) levados a um extremo. Extinguem-se os países, ficam os grandes interesses económicos. Será viável viver assim?
Num artigo intitulado “A pobre Europa dos pobres” (Visão, 21/3/2013) Viriato Soromenho-Marques dá-nos números arrepiantes sobre o significado da incessante cavalgada do neoliberalismo desde os anos 80 do século passado: “Nos EUA, em 1980, os 1% mais ricos detinham 10% da riqueza nacional. Agora controlam 20%! A nível planetário, em 20 anos, os 1% mais ricos aumentaram em 60% o seu rendimento.”, fenómeno que, de resto, é comum à Europa: “Na Áustria, os 5% mais ricos controlam 50% da riqueza, e os 50% mais pobres apenas 4%. Na Alemanha, a desigualdade subiu ainda mais entre 1998 e 2008. Os 50% mais pobres, que detinham 4% do rendimento nacional, estão agora reduzidos a 1%. Os 10% mais ricos, que detinham 45%, possuem agora 53% da riqueza nacional.”. Usa-se para isso a fuga organizada (e legal) ao fisco – a chamada evasão fiscal – através dos paraísos fiscais: “Em 2010 calcula-se que a fuga para paraísos fiscais por parte das grandes fortunas individuais atingiu o montante astronómico de 32 biliões de dólares (mais do que a soma do PIB conjunto dos EUA e do Japão! Em 2011, as operações da «banca sombra», uma rede de instituições que realiza operações bancárias sem se sujeitar à regulação estadual, totalizou 67 biliões de dólares, ou seja 111% do PIB planetário desse ano.” Soromenho-Marques denuncia os dirigentes europeus que consideram “ser o Estado social o inimigo a abater, e não a avalancha de injustiça que se expande como mancha de óleo.”, deixando um aviso: “Quando a revolta suceder ao protesto, só espero que os povos da Europa façam como em 1848, e combatam contra os seus governos e elites corruptas. O pior seria, na maré de ódio e ressentimento, os povos europeus deixarem-se esmagar uns contra os outros, como em 1914 e 1939.”
Em Portugal, a desigualdade na distribuição da riqueza é sempre superior em 2 a 3% à média da União Europeia. E não esqueçamos que os presidentes executivos das empresas que compõem o PSI-20 receberam em 2012 mais de 15 milhões de euros, um aumento de 6% relativamente a 2011 (TVI24, 13/5/2013). É esta agenda ideológica neoliberal, convertida em pensamento único, que permite ao banqueiro Fernando Ulrich, presidente do BPI, que aufere mais de 1000 euros por dia, hipocritamente pôr-se na pele de um sem-abrigo (que ele sabe que nunca será!), cujo provento diário é inferior a 1 euro e concluir que é possível aguentar mais austeridade. A boutade, proferida nos finais de janeiro de 2013, do alto da sua enorme riqueza, segurança e conforto (e em comentário à sua anterior afirmação “Ai aguenta, aguenta!” relativa ao grau de austeridade que o povo português podia aguentar), foi a seguinte: “Se andar aí na rua, infelizmente encontramos pessoas que são sem-abrigo, isso não lhe pode acontecer a si ou a mim porquê? Isso também nos pode acontecer. E se aquelas pessoas que vemos ali na rua, naquela situação e a sofrer tanto, aguentam, porque é que nós não aguentamos?”
É a esta mesma hipocrisia e despudorada ganância, que a socióloga Inês Brasão faz referência num artigo de 2011, “Os portugueses em festa”, onde pretende desmistificar a reiterada narrativa do “viver acima das possibilidades” como expressão suprema, afinal, do ódio de classe: “Nos dias que correm, a burguesia instalada entra por um qualquer restaurante, evento ou espetáculo e pergunta em alta voz pelos sinais da crise…«Vejam. A populaça ainda tem a real lata de vir comer ao restaurante. Vejam. Manifestam-se, fazem greves e ronha, mas aos domingos apresentam-se nas filas dos restaurantes para se sentarem ao nosso lado, com a mesma alegria e a mesma gargalhada solta. Bebem e comem como reis. E depois dizem que a vida lhes pesa.» Isto, ou outras coisas semelhantes, pagaria eu um euro a quem não ouviu ainda dizer.” (Le Monde Diplomatique, ed. port., agosto de 2011). Se as “festas” dos pobres ou remediados são sempre vistas como irresponsáveis e esbanjadoras, pelo contrário, os luxos dos ricos, por mais espampanantes que sejam, são sempre considerados justificados e merecidos; na feliz formulação – que dá título ao artigo – do sociólogo José Reis e do antropólogo Pedro Duarte, “Cumplicidades no topo e culpabilização na base que legitimam e perpetuam as desigualdades.” (Le Monde Diplomatique, ibid.).
É certamente esta ordem das coisas, cada vez mais generalizada,que explica as declarações do advogado espanhol Angel Pelluz à saída do tribunal, na defesa de elementos do partido de extrema-direita, Aliança Nacional, acusados de terem espancado nas ruas de Madrid um sem-abrigo: “Isto [os sem-abrigo] não são seres humanos. Não têm trabalho na vida. São cancros da sociedade.” disse o causídico, que já na audiência tinha declarado que “a preguiça não está inscrita na Constituição. A ocupação de terreno público por quem não tem uma existência digna é causa de rejeição para outras pessoas que respeitam a lei. A preguiça, o não querer fazer nada, o constituir-se um parasita, leva à repulsa” (TVI24, 13/3/2013). Justificou, aliás, o ato dos clientes da seguinte forma: “Os meus clientes não fizeram nada. Eles apenas passaram por ali. O que quero dizer é que este caso explica-se porque houve uma provocação: a existência dessa pessoa na rua”. Semelhante desprezo pelos desfavorecidos manifestou o ex-primeiro ministro italiano, Sílvio Berlusconi, quando foi vaiado junto ao Parlamento italiano, onde se deslocou para participar nas eleições dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado em meados do mês de março: “Vocês deviam ter vergonha, são pobres e estúpidos” (TVI24, 17/3/2013). O estigma classista em todo o seu esplendor!
A impotência da política face aos ditames da economia, isto é, a declarada sobreposição dos interesses individuais sobre os interesses coletivos (no sentido da dissolução dos princípios básicos da vida em comum e da destruição dos mais ténues laços de fraternidade humana, pela concentração inexorável dos recursos existentes nas mãos de uns poucos), têm a sua expressão máxima, em Portugal, com o atual governo de coligação PSD/CDS-PP de Passos Coelho e Paulo Portas. Como diria o personagem Lucien Leuwen no romance homónimo de Stendhal (1835), “L’argent résume tout maintenant.” [O dinheiro resume tudo atualmente]. E é a este mesmo poder absoluto do dinheiroque o sociólogo alemão Ferdinand Toennies (1855-1936) aludia quando estabeleceu, no final de oitocentos,a distinção entre “comunidade” (Gemeinschaft) e “sociedade” (Gesellschaft) associando este último conceito à ideia de sociedade empresarial, empreendimento produtivista que visava a obtenção do lucro e que assentava numa luta concorrencial que tinha precisamente por efeito inevitável o de libertar os indivíduos dos deveres comunitários e das responsabilidades partilhadas; o “salve-se quem puder”.
Mas encarar o Estado social como um custo e um obstáculo ao desenvolvimento e vê-lo de uma forma exclusivamente assistencialista e inibidora da obtenção incondicional de lucros, é ignorar o efeito que o acesso à saúde, à educação e às prestações sociais têm enquanto investimento na qualificação e bem-estar das populações, e na capacidade da própria sociedade gerar desenvolvimentos mais sustentados e assegurar maiores índices de produtividade e riqueza. As sociedades mais desenvolvidas (é o caso dos países nórdicos) são as sociedades mais igualitárias em termos das oportunidades e condições de vida que oferecem aos seus cidadãos (a este propósito, livros como O Espírito da Igualdade. Porque Razão as Sociedades Igualitárias Funcionam Quase Sempre Melhor?, de Richard Wilkinson e Kate Picket, Lisboa, Presença, 2010, ou do prémio Nobel da Economia, Joseph Stiglitz, The Price of Inequality, New York, W. W. Norton & Company, 2012, são particularmente elucidativos). Se Portugal fosse uma sociedade mais igualitária, muitos dos nossos atuais problemas não existiriam. Por isso, José Gil não hesita em afirmar que “O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil.” (Visão, 20/12/2012). O empobrecimento, amplamente proclamado e, segundo todas as evidências, desejado pelos nossos dirigentes políticos, significa, para o filósofo, “não ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência.”, levando àquilo que caracteriza como uma “estranha atomização da população: não é já o «cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si».”
O modelo social proclamado é, portanto, outro: o da precariedade e insegurança, o dos baixos salários e mão-de-obra desqualificada, o da perda de direitos e arbitrariedade de procedimentos. O objetivo é assegurar a submissão generalizada das populações e a sua máxima exploração, com vista a potenciar os lucros predatórios de uns poucos e, desta forma, a competitividade dos seus empreendimentos, quer em termos nacionais, quer sobretudo na cena global. Nas palavras do reputado sociólogo polaco Zygmunt Bauman, “A «austeridade» é um código (ou designação politicamente correta) para fazer cair os custos das razias perpetradas pela economia desregulada («libertada» em terminologia politicamente correta) nos ombros dos setores menos protegidos, e por isso mesmo mais vulneráveis, da população.” (JL, 20/3/2013), acrescentando uma definição verdadeiramente lapidar: “A «austeridade» não tem a ver com o aumento da riqueza nacional, mas com a sua redistribuição e com tornar os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.”
Hugo Fernandez