Aconteceu em Espanha. Um anúncio de emprego publicado nos inícios de março no site www.milanuncios.com, oferecia “quarto e comida” para trabalho numa propriedade de Guadalajara, deixando apenas no ar a “possibilidade de um salário no futuro”. A proposta especifica que se pretende alguém do «sexo masculino, entre 20-40 anos» para ajudar a cuidar de animais. Apesar da precariedade das condições oferecidas, não se poupa nas exigências: o candidato tem de ser «sério, responsável e com bons hábitos» e são «imprescindíveis conhecimentos em construção e eletricidade».
O anunciante diz então que o trabalho será feito «em troca de alojamento e manutenção, facilidades de deslocação e possibilidade de um salário no futuro». Trata-se de uma situação de autêntica “servidão”, como prontamente denunciou a Confederação Sindical de Comissões de Trabalhadores (CCOO) espanhola.
Também por cá o poder político lida bem com situações de autêntica servidão. “Elevar, nesta altura, o salário mínimo seria criar um sobrecusto para as empresas e criar mais uma barreira para o emprego”, afirmou Pedro Passos Coelho no habitual debate quinzenal no Parlamento (6/3/2013). E, apesar de defender que a medida correta para combater o desemprego é precisamente a inversa, isto é, baixar o salário mínimo, reconheceu que, no caso português, tal não era possível, uma vez que o salário mínimo nacional já é “relativamente baixo”. Trata-se de um eufemismo cruel. O efeito combinado do seu efetivo congelamento (e mesmo a sua redução, quando a indexação à taxa de inflação é convenientemente negligenciada pelos sucessivos responsáveis governativos) e do constante acréscimo da carga fiscal (direta e indireta), fazem com que o seu valor nominal se distancie progressivamente do seu valor real.
Subverte-se assim a intenção inicial do estabelecimento de semelhante prestação (uma das conquistas de abril, recorde-se) e aquele que era o seu preceito básico: quem trabalha não pode viver na miséria, isto é, há um limite mínimo abaixo do qual a remuneração do trabalho humano não se pode considerar digna. Neste momento o valor do salário mínimo encontra-se abaixo do limiar da pobreza; os trabalhadores que o auferem recebem tão só 431,65 euros líquidos por mês, quando o limite da pobreza, estabelecido em 2010, se situa nos 434 euros. Aliás, já em 2006, tinha sido possível estabelecer um acordo entre o Governo e as confederações sindicais e patronais no sentido do aumento do salário mínimo nacional para 500 euros, na linha do que se acha consignado na Carta Social Europeia subscrita pelo Estado português, que estabelece a correspondência deste salário a 60% do salário médio. Este acordo, está bem de ver, nunca foi cumprido. Por isso, o Bloco de Esquerda e o PCP propuseram, no início deste ano, no Parlamento, o aumento imediato do salário mínimo para os 515 euros e uma nova subida em julho para os 545 euros. As propostas foram chumbadas com os votos contra do PSD e CDS-PP e a abstenção do PS.Em todo o caso, é destas míseras importâncias monetárias que estamos a falar.
Sabe-se que a inflação no ano corrente vai agravar o valor do salário mínimo em cerca de 3,6%, isto é 18 euros. Parece pouco, mas este montante é imenso. Significa o recuo da fronteira da dignidade e o avanço inexorável da indigência. Se nos últimos dois anos, o salário mínimo tivesse sido atualizado de acordo com a inflação, o seu valor seria neste momento de 533 euros e não os 485 euros brutos mensais.O próprio presidente do Conselho Económico e Social, Silva Peneda, oriundo da área política do Governo e antigo ministro do Emprego e Segurança Social de Cavaco Silva afirmou, numa entrevista à Porto Canal (7/3/2013), que “diminuir o salário mínimo é um disparate do ponto de vista económico, político e social” e lembrando o óbvio: “O emprego só se cria se as empresas tiverem clientes.”, não sendo a revisão em baixa do salário mínimo “uma forma nem uma política para criar mais emprego”, ao mesmo tempo que defendia que “o desemprego só se pode combater com crescimento económico”. O programa ideológico neoliberal sobrepõe-se, desta forma, à mera racionalidade económica.
Redução do rendimento disponível das famílias, diminuição do consumo, aumento da precariedade e da dependência económica parecem ser os pilares da política recessiva de Passos Coelho, com o propósito declarado do “empobrecimento dos portugueses”. O que se pretende, afinal? Não se trata só de garantir a maximização dos lucros pela perversa vantagem competitiva da exploração de uma mão de obra barata que possa servir os interesses especulativos da finança internacional. Trata-se da reconstituição de uma ordem societária que naturaliza a desigualdade e a discriminação, a fazer-nos lembrar tempos antigos. O “pobrezinhos mas honrados” salazarento parece estar de volta nas palavras do inenarrável secretário de Estado, Carlos Moedas, quando declarou que “Portugal hoje vive dentro das suas possibilidades”.
Por isso a questão do salário mínimo é tão decisiva. É este o patamar mínimo da dignidade humana. É esta a exigência elementar de uma sociedade aceitável. É este um sinal de civilização.
Hugo Fernandez