Na sua habitual crónica “A Cor do Dinheiro”, no Jornal de Negócios, Camilo Lourenço criticou asperamente Maria do Céu Guerra por esta se ter insurgido contra a contratação de Paulo Futre para dobrar um filme infantil, alegando que escolhas deste tipo prejudicam os atores profissionais que, a braços com uma aflitiva falta de trabalho, se veem com frequência ultrapassados por indivíduos que se notabilizaram noutras áreas. Afirma o economista que o que a atriz defende é “corporativismo. Puro.”, em que “guildas” teriam a capacidade de condicionar o acesso a certas profissões. Conclui Camilo Lourenço que “No fundo, Céu Guerra está a defender aquilo que o dr. Salazar implementou em Portugal durante 40 anos: a primazia das corporações sobre a sociedade.” (Jornal de Negócios, 27/12/2012) [o artigo intitulava-se, acintosamente, “O Salazar que habita em cada português…”].
Paulo Futre é uma personalidade sobejamente conhecida no campo desportivo, como jogador de futebol e como dirigente (ainda para mais num clube estrangeiro), circunstâncias que lhe granjearam uma popularidade que não parece esmorecer com o passar dos anos. A sua natural simpatia e disponibilidade tornou-o num agente predileto da comunicação fácil e direta, quer no domínio publicitário, quer na promoção de eventos, onde a sua comparência é frequentemente requisitada. Paulo Futre transformou-se, assim, num apetecível produto de marketing, usado não por aquilo que faz ou sabe fazer (nestes domínios, a sua prestação é pouco mais do que medíocre) mas por aquilo que é. É a sua presença que é requerida e não a sua competência.
Dir-se-á, “mas vende!”. É verdade, cumpre a sua função e ninguém lhe pode negar essa virtude. Mas convenhamos que o domínio artístico exige um pouco mais de todos os seus intervenientes. A locução na dobragem de uma obra cinematográfica, por mais irrelevante que ela seja, é um trabalho que deve ser cuidado e entregue às pessoas que sabem fazê-lo. É uma técnica que exige aprendizagem e esforço, que alguns estão habilitados a fazer com uma qualidade minimamente aceitável e outros não. Comparar tal desiderato a “corporativismo” é distorcer totalmente a realidade. É esquecer a importância da habilitação profissional, consubstanciada num percurso mais ou menos longo de aprendizagem e no reconhecimento do trabalho desenvolvido pela certificação das respetivas competências. Não é um preconceito orgânico ou uma monopolização corporativa da produção que estão em causa, mas o reconhecimento efetivo do mérito e esforço profissionais. Não se trata de restringir a ninguém o acesso a determinado trabalho – principal desiderato da lógica corporativa – mas tão-só de lhe exigir a capacitação necessária para o efeito. Parece-me uma atitude do mais elementar bom senso. A não ser assim, diluem-se aptidões, subestima-se o valor da diligência, confundem-se interesses e vocações, promove-se a displicência, campeia o compadrio, o oportunismo “chico-espertista” e a mediocridade dos Relvas deste país.
Camilo Lourenço fala do negócio, dos resultados comerciais; Maria do Céu Guerra refere-se à performance artística, ao ato cultural. Infelizmente sabemos no mundo de hoje para que lado pendem os pratos da balança. Mas isso não pode justificar tudo. Muito menos o menosprezo do trabalho dos artistas em benefício de interesses que têm muito pouco a ver com a cultura.
Hugo Fernandez