No ano que passou comemorou-se o tricentenário do nascimento desse grande vulto da cultura e do saber que foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Figura ímpar de intelectual, autor de projeção universal, inspirador de tantas ideias e vontades, o cidadão genebrino escreveu obra prolixa que abarcou áreas desde a filosofia à política, da pedagogia à literatura. Para o que aqui nos interessa, realçamos aquela que talvez seja uma das mais conhecidas e que maiores repercussões teve: Du Contrat Social, escrita em 1762. Considerada por Rousseau uma “obrita”, conforme consta de uma carta ao seu editor Paul-Claude Moltou de 18 de janeiro desse ano (e cuja primeira versão ficou conhecida pela modesta epígrafe de “Manuscrito de Genebra”), tinha como subtítulo “Principes du Droit Politique”. Nela estava inscrita uma noção que passou a ser central no exercício das modernas democracias: a da necessidade do acordo tácito entre governantes e governados, destinado a assegurar o adequado funcionamento da sociedade e, desta forma, legitimar o poder político instaurado. Defendia-se o estabelecimento de um verdadeiro contrato entre todos a fim de viabilizar a governação baseada no bem comum, isto é, na díade matricial da Liberdade e da Igualdade. Embora a expressão desta volonté général tenha tido, ao longo do tempo, várias formulações, redundou, nos nossos dias, em mecanismos estabilizados de representação política que, assegurados pelos procedimentos eleitorais secretos e universais, são simultaneamente decorrentes e indutores da soberania popular.
Está bem de ver que este acordo impõe limites, sobretudo para quem governa, rejeitando, desde logo, todas as formas de tirania. A este propósito, Rousseau não deixa de alertar para o facto de que “O mais forte jamais será suficientemente forte para sempre ser o senhor se não transformar a sua força em direito e a obediência em dever” (Livro I, cap. III). É o caso de todas as ditaduras que povoaram a nossa história, mas cujo fim, por mais postergado e gerador de sofrimento que tenha sido, acabou sempre por ocorrer perante a força dos cidadãos e a legitimidade da sua soberania.
O contrato social baseia-se, assim, na confiança e no reconhecimento da autoridade de quem governa, único fundamento do poder político legítimo, e verdadeiro esteio da democracia. Mas que fazer quando um governo democraticamente eleito pela maioria dos cidadãos viola de forma grosseira e premeditada tudo aquilo que prometeu em campanha eleitoral, defraudando as expetativas dos seus votantes e impondo medidas que nunca poderia legitimar pelo sufrágio se abertamente assumidas? Que fazer perante o total desrespeito dos governantes pelos governados? Que fazer quando se institui um contrato social perverso, assenta naquele raciocínio escravizador de que nos fala Rousseau, “Faço contigo um acordo completamente à tua custa e em meu proveito, o qual cumprirei enquanto tal me aprouver, e tu observarás enquanto eu quiser” (Livro I, cap. IV)? Que fazer quando a democracia passa a ser um escolho e os cidadãos um enorme incómodo? Claro que a brutalidade deste tipo de procedimento não se equipara ao tipo de violência política própria das tiranias que anteriormente referimos. É de um género mais insidioso, contudo não menos eficaz. Trata-se de uma maneira de fazer as coisas que se baseia na mistificação de propósitos (aquilo que não é dito) e na permanência de um discurso culpabilizador da sociedade e desresponsabilizante da ação governativa, numa lógica sobretudo punitiva – assente na desconfiança – e não construtiva – isto é, contratualmente pactuada (e, por isso, partilhada), como seria normal acontecer numa democracia. São estas as faces do projeto ideológico neoliberal instalado no nosso país e que, de resto, encontra perfeito eco no pensamento hegemónico a nível mundial.
A enorme crise que o mundo atravessa resulta da confluência de dois aspetos: por um lado, a descontrolada sobrefinanceirização da economia que, a partir de 2008, colapsou, devido à ganância e irresponsabilidade dos agentes financeiros internacionais e a uma imparável espiral especulativa, que teve como resultado, por outro, o sugar das energias de uma economia “real” cuja rentabilidade decresceu fortemente sob pressão da competição globalizada e das políticas predadoras das grandes potências, aniquilando a competitividade das pequenas economias nacionais. A completa desregulação económica implementada serviu os interesses de uns poucos que, acumulando enormes dividendos, delapidaram (e continuam a delapidar) os recursos dos povos e dos países. Esta evolução, parcialmente compensada pelo afluxo de capitais a preço de saldo e taxas de juro invulgarmente baixas (que fez a fortuna dos especuladores em todo o tipo de operações aventureiras, próprias de uma “economia de casino”) não podia subsistir, embora incrementasse um consumo que se baseava na mais pura racionalidade, face aos dados e condições existentes (não se pode culpar as pessoas de consumo “acima das possibilidades”, porque essas possibilidades – fictícias ou reais – estavam lá!). Toda esta situação é aquilo que é convenientemente escondido, que não é dito, que se pretende escamotear.
Perante o colapso do sistema, a receita neoliberal clássica: redução das despesas sociais, das políticas de coesão nacional e dos direitos civilizacionais, privatização dos bens públicos, socialização das dívidas privadas de bancos, empresas e fortunas, desregulação dos mercados (doravante sujeitos apenas à lógica impositiva do mais forte) e sobrerregulação obsessiva das leis laborais.
A narrativa da culpabilização coletiva dos povos pelos pecados alheios, repetida ad nauseum na comunicação social, e a cruzada castigadora e moralista de que se arvoram os governos europeus (português incluído), assenta portanto num gigantesco logro subversor do contrato social entre governantes e governados. Esconde as efetivas responsabilidades dos decisores políticos (e não, como se diz, do comum dos cidadãos) nas despesas incomportáveis, em empreendimentos megalómanos e no resgate financeiro de interesses particulares, numa deriva absolutamente irresponsável da correta gestão dos dinheiros públicos. Fazemos, pois, nossas as palavras de Viriato Soromenho-Marques, segundo o qual “A monstruosa explicação «moral» de que os povos do Sul da Europa «viveram acima das suas possibilidades» insulta não só a inteligência, como ofende as condições de vida de um povo que jamais atingiu sequer o rendimento médio dos cidadãos da União Europeia.” (Visão, 6/12/2012).
O agravamento insuportável das condições de vida de um povo poderá justificar-se quando há condições excecionais de segurança nacional (por exemplo, uma invasão ou uma guerra) ou um desígnio nacional inadiável e amplamente apoiado e partilhado. Na atual conjuntura portuguesa, dificilmente encontraremos qualquer destas condições. Pelo contrário, o repúdio generalizado do programa neoliberal em curso (que alguns apelidam justamente de “PREC da direita”) impõe a consulta popular o quanto antes. Até porque nada do que está a ser feito foi apresentado nos programas eleitorais dos partidos vencedores ou sufragado pelos cidadãos nas eleições de 2011. É, isso sim, um gigantesco embuste que faz com que o atual governo, sendo legal, tenha deixado de ser legítimo, à luz dos mais elementares princípios democráticos. Antes nos deparamos com um “estado de exceção”, que a crescente dívida pública induzida pela crise do sistema financeiro (e na condição de manter ou mesmo aumentar os lucros e o poder deste sistema através da transferência maciça dos rendimentos do trabalho para o capital e do setor público para o setor privado) tudo parece justificar – incluindo a “suspensão da democracia”, como Manuela Ferreira Leite, dirigente do PSD, propunha há tempos atrás, numa engenharia social recorrente em todos os matizes e latitudes.
Por isso, como explica Sandra Monteiro, “A mudança de regime em curso nos países austerizados é suicidária. É um projecto para uma regressão social e uma recessão económica prolongadas, em Portugal e na Europa. Todos os povos serão prejudicados, todos os especuladores e rentistas terão feito excelentes negócios.” (Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, Novembro de 2012). Tudo isto realizado com uma enorme sobranceria, um fanático “espírito de missão” e um inominável desprezo pelo sofrimento da generalidade dos cidadãos – a “fantomização em massa do povo português”, de que fala José Gil (Visão, 20/12/2012) – de que são exemplos concludentes o indisfarçável deleite com que o ministro das Finanças, Vítor Gaspar, anunciava no passado dia 3 de outubro o “enorme aumento de impostos” previsto no Orçamento de Estado para 2013, ou o desplante e cinismo de corifeus da ordem reinante como João César das Neves, para quem “Esta crise é uma oportunidade de bondade, de caridade e de solidariedade. Bendita crise que nos trouxe ao essencial” (Visão, 20/12/2012). Malditos sejam!
Quando a confiança nos governantes é assim traída, só a força pode impor o poder. Mas como lembra o filósofo setecentista, “Convenhamos pois que a força não funda o direito e que só temos a obrigação de obedecer aos poderes legítimos” (Livro I, cap. III). É urgente, pois, que a soberania popular se faça ouvir.
Hugo Fernandez