A todos aqueles que aqui, de vez em quando, nos "visitam" quero, em nome destes dois que vão "alimentando" a escrita deste espaço, dizer (repetindo-me!) que nestes tempos exigentes e incertos de tumultuosa agitação onde uma infinidade de ruídos distantes, anónimos e, por vezes, disformes, tende a distorcer os rumores límpidos do mundo, a confundir as palavras com as coisas, a sufocar desejos e esperanças e a adiar constantemente o gesto que nos aproxima dos outros, saibamos nós, na serenidade destes dias, redescobrir a essência substantiva das coisas, reatar os nós que nos prendem ao universo e ir ao encontro do sentido.
Os meus sinceros votos de um feliz Natal e de um ano de 2013 encarado com alento e confiança e que todos saibamos estar ao leme para fazer frente aos "mostrengos"!
Entretanto, deixo-vos com o depoimento, surpreendente e lúcido, de um "desempregado ativo" dirigido a um dos servidores dos "mostrengos", no fundo, um mostrenguito de mão...
A “metade do céu”, designava-as Mao-Tsé-Tung. O ano que agora termina não foi fácil para as mulheres. E não falamos só do acréscimo de casos de violência doméstica verificados um pouco por todo o lado, Portugal incluído (390 casos apresentados pelo Ministério Público nos tribunais de Lisboa só entre março e outubro últimos, para além do assassinato de 30 mulheres no seio do lar conjugal). Mas sim, em plena segunda década do século XXI, da mais abjeta subalternização da sua própria condição humana, transformando-as numa categoria inferior de gente, sem direito à instrução, à liberdade, à cidadania, enfim, à vida. Uma espécie de novos párias. Bastam alguns exemplos para confirmar esta asserção.
Em setembro passado, na Tunísia, uma mulher estava com o noivo dentro do carro, em Tunes, quando três polícias os detiveram, algemando-o a ele e violando-a a ela. Num ato de enorme dignidade e coragem, a mulher apresentou queixa e o caso chegou à justiça. Só que a mulher foi chamada a tribunal não enquanto vítima, mas como acusada, arriscando uma pena de prisão de seis meses por atentado ao pudor. Na versão do Ministério do Interior, o casal foi surpreendido pelas autoridades numa “posição imoral”, contrariando o testemunho dos noivos, que garantiram não só estarem vestidos, como cada um no seu banco do automóvel. Para Zeyneb Farhat, responsável da Associação Tunisina das Mulheres Democratas, “No fim de contas, esta mulher foi violada três vezes: quando foi detida no carro, que é um espaço privado, quando os polícias a atacaram e quando a Justiça fez dela uma acusada” (Público, 28/9/2012). Isto num país que derrubou uma ditadura e que, nas primeiras eleições livres pós-Ben Ali, em outubro de 2011, colocou no poder os islamitas moderados do Ennahda, e onde a nova Constituição consagra a discriminação feminina ao declarar que a mulher é “complementar” do homem (e não igual).
No mês de outubro, o mundo foi surpreendido pelo brutal atentado a uma criança paquistanesa de 14 anos, perpetrado pelos taliban em Mingora, no Vale do Swat, no norte do país. Malala Yousafzai, de seu nome, foi vítima direta da aplicação da sharia (lei islâmica) na região, uma concessão do governo do Paquistão aos combatentes islâmicos, em 2009, para obter o cessar-fogo. Atingida a tiro na cabeça enquanto seguia na carrinha da escola, Malala foi de imediato internada no hospital militar de Rawalpindi, em estado de coma. O prazo dado pelos taliban tinha terminado: mais nenhuma menina poderia ir à escola. A jovem paquistanesa não acatou a decisão e arriscou a vida. A coragem que demonstrou é imensamente superior à cobardia desprezível dos seus atacantes. Tem, pois, razão o editor de política internacional da revista Slate quando afirma “Uma adolescente a falar no direito das mulheres à educação é a coisa mais assustadora no mundo para os taliban”, acrescentando “Ela não pertence a uma ONG estrangeira. Ela é muito mais perigosa do que isso: uma local, defensora do progresso da educação e do esclarecimento. Se pessoas como ela se multiplicarem, os taliban não têm futuro.” (Público, 13/10/2012).
Mas não se pense que o pensamento troglodita face às mulheres se circunscreve a determinadas sociedades ou zonas do mundo. Ainda em outubro, o conselheiro do governo espanhol e presidente do Conselho Geral da Cidadania no Exterior (organismo que representa os espanhóis que vivem no estrangeiro), José Manuel Castelao Bragaña, afirmava numa reunião oficial, que “As leis são como as mulheres, existem para ser violadas”. A afirmação deste advogado galego de 71 anos, militante do Partido Popular, chocou toda a sociedade espanhola e teve enormes repercussões no exterior, obrigando à sua demissão.
Por vezes, este tipo de opiniões aparece sob a capa de autoridade académica. É o caso do filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de um muito badalado Guia Politicamente Incorreto da Filosofia. Considerado o enfant terrible dos “novos polemistas da direita”, Pondé, na crónica semanal que mantém na Folha de São Paulo, saiu-se com esta pérola: “Assim como a prostituta é a primeira vocação da mulher, afirmo: sou lido, logo existo. Saber que eu tenho um preço é uma das formas mais belas de libertação que conheço.” (Público, suplemento “2”, 14/10/2012). No lançamento da sua obra em Lisboa, reiterou a afirmação, questionando “Qual é a mulher que fez sexo gostoso e nunca brincou com ser prostituta? Isso é obviamente verdade.” Não menos espantosas são as declarações de dois candidatos republicanos ao Senado norte-americano, derrotados nas últimas eleições: para Todd Akin, no Missouri, “é muito raro” uma mulher engravidar em casos de “violação legítima” (seja lá o que isso for!), enquanto que para o seu correligionário Richard Mourdock, no Indiana, se uma mulher engravidar na sequência de uma violação é porque “Deus quis que isso acontecesse” (Diário de Notícias, 8/11/2012).
Que comentários merecem tamanhas enormidades? Talvez aquele que, em 1486, o erudito e humanista italiano, Giovanni Pico della Mirandola, deu na sua obra De hominis dignitate oratio (Discurso Sobre a Dignidade do Homem) onde explicava a natureza variável, isto é, passível de liberdade de escolha (ao contrário das outras espécies) que Deus deu ao Homem: “Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo.” (Lisboa, Edições 70, 1989, p. 51). Infelizmente, nos tempos que correm, as bestas ainda pululam.
Hugo Fernandez