Com uma execução orçamental desastrosa, as finanças públicas derrapam perto de três mil milhões de euros, pondo claramente em risco o cumprimento do défice previsto no memorando de entendimento com a troika internacional. Os dados da contabilidade oficial, apresentados pelo Instituto Nacional de Estatística em setembro, apontam para um défice de 6,9% do PIB, tendo-se o Estado português comprometido a não ultrapassar, até ao final de 2012 e já após a revisão das metas, os 5% (recorde-se que em 2011, o défice foi de 4,4% do PIB). O total da dívida externa portuguesa, quer a de origem pública, quer a de proveniência privada, atingiu os 233% do nosso PIB, um número impensável e um verdadeiro absurdo que condena a nossa vivência coletiva e a simples existência de Portugal como país independente. Aliás, os 119% relativos à dívida pública já representam um aumento de 13,4 mil milhões de euros face a 2011. Se tivermos em conta que as despesas com os juros dos empréstimos entretanto contraídos aumentaram 20% e são responsáveis por perto de dois terços do total do défice (61%), temos uma noção mais aproximada da desgraça em que nos encontramos.
Por outro lado, em resultado da 5ª avaliação ao programa de ajustamento nacional, a troika premiou o Governo português e decidiu alargar por um ano o prazo de cumprimento das metas acordadas com as autoridades nacionais, que terão que reduzir o défice para um valor inferior a 3% apenas em 2014, sendo que os limites intermédios serão de 5% em 2012, 4,5% em 2013 e 2,5% em 2014. Dir-se-ia que os credores de Portugal estão satisfeitos com a atuação seguida, que permite, desde logo, assegurar por mais tempo uma rentabilidade não despicienda por via dos escandalosos juros cobrados pelos empréstimos concedidos, e a continuação da sujeição do país aos ditames da finança internacional, perpetuando um protetorado perverso e indesejável. Está bem de ver que são “tudo bons rapazes” (goodfellas, diria Martin Scorsese).
Seria expetável uma mudança de política com vista ao relançamento da economia e incentivo ao investimento público e privado para fazer face aos encargos com uma dívida externa em permanente crescimento e à brutal contração do mercado interno, com a consequente queda das receitas fiscais. Seria, mas não é esse o caminho do Governo de Passos Coelho. Pelo contrário, insiste-se no aprofundamento da mesma receita recessiva que tão maus resultados tem dado para o país. Como se explica tal atitude? A tentativa gorada de imposição, para a generalidade dos trabalhadores, de um aumento de 11% para 18% da sua contribuição para a Segurança Social por via da Taxa Social Única (TSU) e, em simultâneo a sua redução de 23% para 18% para as empresas, é um bom exemplo do que está em jogo. Esta transferência forçada dos trabalhadores para os empregadores foi justificada como um estímulo à competitividade das empresas e um incentivo à criação de emprego, quando o que se tratava era tão só de um brutal aumento de impostos sobre os rendimentos do trabalho (2,8 mil milhões de euros a menos nos bolsos dos portugueses), contraindo ainda mais o consumo e afundando a procura interna, com claro prejuízo para o desempenho da generalidade das empresas portuguesas que, passando a vender ainda menos, seriam forçadas a diminuir investimentos e, em consequência, a aumentar o desemprego, pois não haveria condições nem interesse em contratar mais trabalhadores, o que agravaria sobremaneira a recessão já existente (como aliás foi unanimemente reconhecido quer por sindicatos, quer por organizações patronais). Nas palavras do insuspeito José Pacheco Pereira “A medida é injusta, acelera um processo de transferência maciça de recursos dos mais pobres para os mais ricos, que é o principal ajustamento que se está a fazer.” (Sábado, 13/9/12).
Por outro lado, num estudo publicado no Público (21/9/12) conclui-se que bastava taxar em 0,3% o património financeiro existente em Portugal (excluindo os depósitos bancários) para o Estado arrecadar uma receita de 2,5 milhões de euros, isto é, o equivalente ao valor conseguido com a alteração da TSU. A invulgar crispação com que a eminência parda do Governo e autor confesso da TSU, António Borges, reagiu ao chumbo desta medida, demonstra bem que há “outras razões que a razão desconhece” para as opções que têm vindo a ser tomadas. Também Passos Coelho invocou uma pretensa ameaça operária para explicar a rejeição pelos empresários da TSU (um completo disparate, está bem de ver!). Quer se assuma, quer se pretenda dissimular, está em curso uma nova fase de acelerada acumulação de capital e de usufruto, por parte de uma pequena minoria, de lucros predadores (Freitas do Amaral – esse perigoso esquerdista! – em entrevista televisiva nos inícios de setembro chamou-lhes “tubarões”). No cumprimento de uma clara agenda ideológica neoliberal, os grandes interesses, causadores da crise, permanecem intocados, tornando mais do que nunca atual a denúncia feita pelo sociólogo norte-americano C. Wright Mills, na sua obra clássica de 1959, The Power Elite, relativamente à crescente afirmação e poder daqueles “who have more of what there is to have.”
Só assim se percebe que, em substituição da TSU, o Governo se proponha efetuar cortes nas pensões e subsídios (nomeadamente uma nova diminuição temporal do subsídio de desemprego), o aumento da idade de reforma e a redução dos escalões do IRS que resultarão inevitavelmente num agravamento da carga fiscal por efeito do aumento médio das contribuições. Como se quer recuperar a economia portuguesa seguindo uma política que leva à sua destruição? Afinal, o objetivo, ainda que a coberto do cumprimento das metas orçamentais, será mesmo o aumento do desemprego (record de 15,9% em agosto, o 3º pior da União Europeia), a desvalorização do trabalho e o empobrecimento e precarização das condições de vida da generalidade da população. Em dois anos, o rendimento disponível mensal por pessoa (incluindo população ativa e não ativa) caiu 100 euros, a maior queda de que há registo desde, pelo menos, 1999, segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (28/9/12). O rendimento disponível ajustado das famílias – rendimento auferido depois de deduzidos os impostos e transferências sociais (que aliás foram 28,4% mais elevados que em igual período do ano passado) – caiu 4,9% relativamente ao ano anterior. Com isto pretende-se garantir uma mão de obra barata e submissa que aumente a proclamada competitividade das grandes empresas, em especial exportadoras, por via da redução dos custos de trabalho (apesar de, no período entre janeiro e julho do presente ano, as despesas com pessoal terem já caído cerca de 17%), e assegurar os ganhos especulativos da finança internacional.
Por outro lado, o Governo distribuiu benefícios fiscais no valor de 1,23 mil milhões de euros a empresas, sendo que apenas 20 arrecadaram 62% do total e, destas, 17 têm representação no offshore madeirense, conforme dados disponibilizados pelo Ministério das Finanças (28/9/12). Talvez fosse a isto que se referia Passos Coelho na conferência sobre o Desenvolvimento Sustentado, que decorreu no dia 27 de setembro no Centro de Congressos do Estoril, quando, em defesa da TSU, invocou a necessidade de “recentrar a visão institucional do papel das empresas”, explicando, numa grosseira mistificação do que está em causa, que “se a visão que temos das empresas não é a de instituições relevantes, mas estão reconduzidas, por qualquer razão, à dialética do trabalho e do capital, então teremos progredido muito pouco” (Público, 28/9/12).
Não é novo este discurso e estas intenções. Logo em 2011, pouco depois de ter tomado posse, Passos Coelho já havia declarado que “Só vamos sair da crise empobrecendo”. Ora, como referiu o sociólogo Elísio Estanque num artigo de opinião no jornal Público (6/8/12), o princípio prevalecente na nova ordem mundial é o de “cada um segundo as suas capacidades, até à exaustão; a cada um segundo a sua subserviência devota ao capital. Eis o sonho colorido do liberalismo radical: o regresso do trabalho escravo.” Por outro lado…
Hugo Fernandez