É bem conhecida a frase de Salazar, “Sei muito bem o que quero e para onde vou”. Cavaco, por seu lado, afirmava “Raras vezes tenho dúvidas e nunca me engano”. Sócrates, em todos os seus atos, era o cúmulo da presunção. Agora, num jantar do grupo parlamentar do PSD, assinalando o primeiro ano de governo e o fim da sessão legislativa, Passos Coelho disse: “Se algum dia tiver de perder umas eleições em Portugal para salvar o país, como se diz, que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal.” (23/6/2012). Para além da óbvia fanfarronice da declaração, a pretender mostrar caráter e determinação, e disfarçar o facto elementar (bem conhecido, de resto, do seu autor) de que a ação política visa precisamente a conquista e manutenção do poder, Passos entra assim na galeria dos illuminati da nossa desgraça, deslumbrados que estão por eles próprios e pelas suas certezas.
“Mudar Portugal” é o propósito reiterado de Passos Coelho e do seu Governo. Mas sobre o como e em que sentido a mudança será feita, nada nos é dito. Aquilo que o filósofo José Gil denomina “regime de silêncio discursivo do poder” (Visão, 2/8/12) é implementado através de uma dupla estratégia de “descaramento do discurso” – isto é, tornar aceitável o que em circunstâncias normais seria intolerável (total ausência de ética, para-legalidade na atuação privada e pública) – e de silenciamento da realidade concreta e dos efeitos altamente perniciosos da agenda austeritária neoliberal: desvalorização do trabalho, precarização das existências e empobrecimento da generalidade da população, de modo a garantir a maximização selvagem dos lucros e a manutenção de uma casta predadora no poder. Claro que estas intenções políticas são sempre ocultadas no discurso oficial – os limites mínimos da decência impedem que sejam abertamente proclamadas – e os seus efeitos sociais permanentemente desvalorizados, levando mesmo os explorados a acarretar com a culpa da sua exploração e fazendo ressoar a afirmação certeira de Steve Biko: “A mais poderosa arma nas mãos do opressor é a mente do oprimido”.
Não será paradoxal reagir à crise intensificando as políticas que a desencadearam? Não será imoral não responsabilizar aqueles, indivíduos e/ou instituições, que estiveram de facto na sua origem? A quem interessa então a manutenção do atual statu quo? Este “projeto”, baseado no que o sociólogo norte-americano Craig Calhoun apelida de “economismo” (economism) – visão distorcida e positivista do que é a economia – esquece dois aspetos essenciais da crise: o de que o equilíbrio das finanças públicas depende não só da redução das despesas, como do aumento das receitas (por via das contribuições e impostos) – para o que é absolutamente essencial o combate à fraude e evasão fiscal – e de que o crescimento económico reduz o peso da dívida pública no PIB e, deste modo, atenua o défice do Estado. Para cumprir o primeiro destes desideratos, a impunidade fiscal tem que desaparecer para os rendimentos de capital, as transações financeiras ou os lucros das empresas offshores. O próprio ex-ministro das Finanças do PSD, Miguel Cadilhe, admitiu que uma única cobrança sobre o património (imóveis, ações, depósitos, etc) incidindo nas pessoas singulares ou coletivas com os rendimentos mais elevados poderia reduzir a dívida pública em 10 a 15% do PIB (cerca de 17 mil a 25,5 mil milhões de euros) (Visão, 28/6/12). Para além de socialmente mais justa, a aposta no crescimento económico, por outro lado, impediria o efeito recessivo provocado pelo corte drástico da despesa e do investimento públicos, a abertura de linhas de crédito para o financiamento das empresas, a criação de mais emprego, maiores possibilidades de expansão e até a diminuição dos juros cobrados pelos mercados financeiros, já que um maior crescimento permite menos dificuldade em fazer face aos empréstimos contraídos, reforçando a confiança dos credores. Pelo contrário, a recessão e o desemprego agravam o problema da dívida e empobrecem o país. E é por aí que o Governo de Passos Coelho segue.
É assim absolutamente hipócrita a surpresa com que foram recebidos os mais recentes indicadores de execução orçamental divulgados no final de junho pelo Instituto Nacional de Estatística: o défice público situou-se nos 7,9% do PIB no primeiro trimestre de 2012 – pior em 0,4% do que o índice homólogo do ano anterior – prevendo-se que, no final do ano, a manter-se inalterado o atual estado das coisas, o desvio se situe entre 0,8% e 1,2% (representando cerca de dois mil milhões de euros), ainda que nessa altura se tenha que atingir a meta contratualizada com a troika de 4,5%. Com o desemprego ao nível mais elevado de sempre (segundo o Eurostat, atingiu em abril 15,2%), uma brutal contração no consumo e a queda das receitas fiscais em cerca de 3,5%, a fórmula para o desastre parece estar completa. Para José Maria Castro Caldas, professor e investigador da Universidade de Coimbra, “O teste da austeridade está feito e a conclusão é clara: ela não reduz nem o défice nem a dívida e está a provocar uma situação insustentável a nível social” (Visão, 5/7/12). Opinião que vem corroborar a afirmação premonitória de Jean-Paul Fitoussi feita num seminário sobre a Europa Social que decorreu em Lisboa em maio de 1997, segundo o qual a situação económica de maximização do interesse pessoal só poderia subsistir baseada no aumento da desigualdade social e no empobrecimento continuado da população. Vivemos certamente aquilo que Boaventura de Sousa Santos vem caracterizando como “fascismo social”.
Por isso, quando Passos Coelho diz que está “surpreendido” com os números do desemprego ou com a contração “maior do que a esperada” no consumo não é por ser leviano ou um simples ignorante. É porque o seu governo optou por se submeter aos poderosos interesses da banca e da finança (cujas perdas especulativas nunca lhes foram assacadas, penalizando ao invés os contribuintes) e aos desígnios predadores dos grandes grupos económicos nacionais e internacionais (que aumentam continuadamente os seus proventos). Até o insuspeito José Pacheco Pereira, na sua habitual crónica semanal no Público (7/7/12) chega à seguinte conclusão: “Havia melhores condições há um ano do que há hoje, mas o Governo resolveu não as usar.”
Hugo Fernandez