As Revoluções Liberais do século XIX foram feitas em nome do princípio da universalidade da lei contra a discricionariedade do privilégio. Tal postura decorria de um paradigma igualitário da cidadania em rutura com uma lógica hierárquica discriminatória e exclusivista que tinha dominado a história da humanidade ao longo de séculos. Como prognosticava o então primeiro-ministro do Reino Unido, Benjamin Disraeli, o “princípio aristocrático” seria destruído pela consagração do sufrágio universal. Mas aos direitos civis (a liberdade religiosa, a liberdade de expressão e pensamento, a defesa da propriedade e segurança individual) e políticos (direito à participação política e ao voto) adquiridos por um crescente número de cidadãos, somavam-se os efeitos deletérios de uma lógica capitalista baseada no funcionamento implacável do mercado e profundamente desigualitária na atribuição de lucros e prejuízos.
Perante tal estado de coisas, o pensamento liberal foi confrontado, ao longo do século XX, com as aspirações democráticas das populações, que reclamavam, com cada vez maior insistência, os direitos sociais e económicos que lhes assegurassem uma vida digna, por intermédio de políticas públicas implementadoras de segurança social e bem-estar geral normalmente associadas ao chamado “Estado-Providência”. Para isso, impunha-se tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, através do que se convencionou apelidar de “discriminação positiva” – ou, na terminologia anglo-saxónica, “affirmative action” – nomeadamente por intermédio de mecanismos de tributação progressiva segundo o princípio liminar de paga mais quem mais recebe. Esta discriminação a favor dos mais desfavorecidos deve prever, a montante, regimes de isenção contributiva e, a jusante, a bonificação das prestações, numa lógica redistributiva do rendimento social que permita àqueles serem isentados de contribuir para o sistema na proporção do que recebem (que é, na maioria das situações, residual). Pelo contrário, os mais abastados deverão contribuir de acordo com as suas possibilidades para a manutenção da protecção social universal, garantindo a sustentabilidade do sistema e a coesão da sociedade e, logicamente, beneficiando como todos os outros dos seus benefícios. Esta “discriminação positiva” decorre de regras de aplicação seletiva e diferenciada, criadora de situações de desigualdade (embora relativa e não absoluta, já que o seu público-alvo é largamente deficitário e dependente), mas com o objetivo final de promover a igualdade, isto é, dar mais a quem menos tem – aquilo que a jurista francesa Gwénaële Calvés apelida de “discrimination bienveillante”. Este tratamento diferenciado – no sentido de preferencial – visa potenciar, junto dos grupos sociais carenciados, uma verdadeira igualdade de oportunidades. Seguindo uma lógica discriminadora de jure tenta-se igualizar de facto. Só com este propósito é aceitável a aparente suspensão do postulado matricial da igualdade universal de direitos.
A ideia da proteção social dos cidadãos “do berço à sepultura”, como foi proposto em meados do século passado por um dos políticos britânicos que mais contribuíram para este desiderato, Lord Beveridge (responsável pela comissão que apresentou ao Parlamento britânico, em 1942, o Report of the Inter-Departmental Committee on Social Insurance and Allied Services, conhecido vulgarmente por Relatório Beveridge), é não só inteiramente justa, como fundamental para obviar às desigualdades crescentes. Concorrer para o bem comum deveria ser o desígnio fundamental de qualquer sociedade. O vínculo assim criado, obrigando os membros ativos da sociedade a uma contribuição social sobre os rendimentos auferidos, permitirá garantir benefícios presentes e futuros (quando, por motivo de doença, reforma, etc, cessam esses rendimentos) sob a forma de prestações pecuniárias ou serviços assistenciais aos que deles necessitam e proporcionará a todos idêntico e valorizado estatuto de cidadania. Que estes mecanismos de segurança social representam um custo acrescido para a sociedade é uma evidência. Mas que este custo não é certamente superior aos encargos sociais com, por exemplo, a protecção da propriedade privada (administração, tribunais, forças de segurança) ou com os direitos societários em geral (funcionamento da democracia, defesa nacional e compromissos decorrentes do direito internacional), também me parece forçoso reconhecer.
A defesa deste sistema é um imperativo ético, desde que estejam salvaguardadas todas as condições para a sua sustentabilidade. Como é que isto se consegue? Como se previne que as despesas sociais se expandam a um ritmo superior à da riqueza produzida na economia, ou seja, que haja um desequilíbrio entre o montante global das contribuições realizadas e o volume das transferências e benefícios auferidos, assegurando a viabilidade do seu funcionamento? Precisamente obrigando quem mais tem – e alguns têm cada vez mais! – a uma maior contribuição através de uma efetiva progressividade fiscal (escalonamento com base nos rendimentos auferidos) e à implementação de carreiras contributivas mais equitativas (sistema de bonificações/penalizações). Só desta forma se poderão compensar eventuais quebras demográficas ou de outro tipo que possam desregular o sistema. Sobretudo, só desta forma a chamada “taxa de substituição”, isto é, a relação entre o montante da pensão recebida pelo beneficiário com a carreira contributiva completa e a remuneração média de toda a sua carreira profissional poderá efetivamente ser estabelecida e corresponder, segundo este critério, ao que é socialmente justo.
É assim forçoso inverter a atual tendência de diminuição tributária das grandes fortunas. Basta ver o caso paradigmático dos EUA onde, em 1944, o Congresso fixou num nível record o imposto sobre os rendimentos superiores (na altura orçados em 200.000 dólares): 94%. Na década seguinte rondou os 90%, para nos anos 60 cair para menos de 70%. Com a chegada dos neoliberais ao poder, durante a presidência de Ronald Reagan, a taxa contributiva voltou a baixar para 50% em 1981 e 28% em 1988. Atualmente é de 35%, se descontarmos os rendimentos provenientes dos benefícios do capital e dos lucros acionistas cujo imposto é de apenas 15% (Sam Pizzigati, “Limitar os rendimentos: uma exigência que renasce”, Le Monde Diplomatique, ed. port., fevereiro de 2012). É igualmente imperativa a regulação dos mercados e um combate decisivo à evasão fiscal. O estudo da Tax Justice Network, publicado recentemente no diário britânico The Guardian (24/7/12), revela que os paraísos fiscais como Gibraltar ou as ilhas Caimão guardam mais de 17 triliões de euros, ou seja, o equivalente à soma do PNB dos EUA ou do Japão.No mesmo estudo é revelado que cerca de 9 triliões de euros são detidos por apenas 92 mil indivíduos. Portanto, quando falamos de políticas sociais estamos a referir-nos a percentagens diminutas relativamente a montantes de tal ordem.
Claro que esta lógica de redistribuição social por via das políticas de “discriminação positiva” é frequentemente criticada por perverter o próprio princípio da igualdade, isto é, da efetiva promoção da igualdade de oportunidades que, a prazo, tornaria mesmo aquelas políticas dispensáveis. Acresce que o cariz assistencialista de tais medidas – que alguns não hesitam em denominar “caridadezinha” – decorre muitas vezes de uma capa de censura social latente, baseada na narrativa do “viver acima das possibilidades”, da “necessidade de poupança” (como se quem ganha 200 ou 300 euros por mês o pudesse alguma vez fazer!) e do empolamento de “méritos” duvidosos de alguns que, mascarando o privilégio da condição, subvertem qualquer veleidade de justiça social – e que, sobretudo, transformam as desigualdades existentes em evidências naturais –, acabando por representar a forma mais direta de discriminação e exclusão. É o caso do chamado Programa de Emergência Social do atual Governo, que Boaventura de Sousa Santos qualifica como um “programa para gerar pobres agradecidos” (Público, 24/8/11), e a propósito do qual um outro reputado sociólogo português, Manuel Villaverde Cabral, se interroga, irónico, “e onde estão os protestos?”
No entanto, se encararmos a igualdade como um fim a atingir e a equidade como um meio para esse efeito – no sentido de permitir despoletar uma serie de mecanismos sociais diferenciadores com esse objetivo –, esta dicotomia deixa, em larga medida, de ter razão de existir. Porque a “discriminação positiva” não significará mais do que, por um lado, a resposta a problemas de urgência social e, por outro, o elemento indutor indispensável a um processo individual e geracional de inversão do “ciclo da desigualdade”. Como refere o sociólogo francês Michel Wieviorka na sua obra de 2000, La Différence (Fenda, 2002, p. 115), “Quando a equidade é posta ao serviço da igualdade, quando certas vantagens particulares são concedidas a um grupo (ou a um território) de maneira a permitir que os seus membros beneficiem das mesmas oportunidades de sucesso ou de mobilidade social que o resto da população; quando, igualmente, a reposição em causa regular das vantagens concedidas e outras barreiras de protecção se insurjam para evitar os abusos ou as perversões que um tal tipo de política pode engendrar – então, estamos perante um factor de enriquecimento da democracia e de reforço da solidariedade colectiva.”
Hugo Fernandez
Que aos governantes ou políticos em geral não se exija formação superior parece-me do mais elementar bom senso. Mas que se deve exigir honestidade na declaração de habilitações literárias também me parece evidente. Não pelo estatuto social que estas possam conferir, mas precisamente pela assunção da transparência e lisura de procedimentos em todas as circunstâncias da vida pública. De qualquer forma, bem mais grave é a postura de instituições universitárias que apadrinham formações espúrias, reconhecendo habilitações nulas e creditando academicamente competências inexistentes. Mais uma vez é a questão da honestidade e lisura de procedimentos que está em causa. Mas, neste caso, acrescida da ignorância científica, o que, tratando-se de uma universidade, é coisa inaceitável.
A que propósito a atividade política pode merecer créditos científicos, ainda que seja num curso de ciência política? É que qualquer conhecimento científico exige um afastamento prudente face ao objeto de investigação, bem como um estudo aturado, condições que a mera ação política está longe de poder assegurar, desde logo pela falta da intenção e disposição que tal empreendimento implica. Podemos mesmo considerar que a participação ativa na contenda política inviabiliza, em larga medida, o tempo e distanciamento epistemológico necessários à reflexão sobre essa prática. Sendo a política o objeto de estudo da ciência política, dificilmente aquela poderá induzir, sem outros desideratos, a produção de conhecimento científico. Apenas alguns indivíduos particularmente dotados o conseguiram fazer, o que está longe de constituir regra para o comum dos mortais. Aliás, a própria etimologia latina scientia significa precisamente um conhecimento adquirido através do estudo.
E o que é, afinal, a ciência política? Por mais variados que sejam os seus enfoques, é o resultado de uma coerência lógica e provada na aportação de dados e interpretações, através de uma definição clara de conceitos e enunciados sobre a dimensão política das sociedades e a elucidação das ideias e mecanismos conducentes às escolhas individuais e coletivas que são tomadas para o seu governo comum. Na definição de um manual clássico sobre a matéria, “A política é uma atividade generalizada que tem lugar em todos os âmbitos em que os seres humanos se ocupam em produzir e reproduzir as suas vidas. Esta atividade pode implicar tanto enfrentamento como cooperação, de maneira que os problemas se apresentam e resolvem através de decisões tomadas coletivamente. A ciência política é uma disciplina académica que pretende descrever, analisar e explicar de forma sistemática esta tomada de decisões, assim como os valores e pontos de vista que lhes estão subjacentes.” [tradução minha] (Marsh, David; Stoker, Gerry, eds., Theory and Methods in Political Science, New York, Macmillan, 1955). Qualquer estudante do primeiro ano do curso de ciência política sabe do que estou a falar.
O que surpreende (ou talvez não!) é que tudo isto devia ser do conhecimento da universidade em causa. Não o sendo, dificilmente esse estabelecimento de ensino poderá continuar a ostentar semelhante estatuto académico. Havendo outros interesses inconfessáveis em jogo, então configura-se uma situação de compadrio ou mesmo de fraude e aí entramos no âmbito da investigação criminal. De qualquer maneira, nada disto tem a ver com ciência… mas tão só com determinado estilo de fazer política.
Hugo Fernandez
A sobrevivência do Estado tem prioridade sobre a Constituição. Esta afirmação, que ouvi ontem num dos telejornais, produzida a propósito do acórdão do Tribunal Constitucional sobre os cortes dos subsídios de férias e de Natal, parece-me bizarra.
O que é o Estado? O Estado é o conjunto de órgãos que administram o País. Ora esses órgãos, que incluem a AR, o governo, a PR, os tribunais, etc., não surgiram ex nihilo, foram instituídos pela Constituição da República e têm o seu âmbito de acção determinados por este documento. Assim sendo, como é possível afirmar que a sobrevivência do Estado tem prioridade sobre a Constituição?
O Estado de “Direito” é o Estado Constitucional, que emerge da Lei e se circunscreve à Lei. O Estado que se sobrepõe à Constituição não é o Estado de Direito, é o Leviatã de Thomas Hobbes.
Deus nos livre desta gentalha canalha.