Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Domingo, 3 de Junho de 2012
BUSINESS AS USUAL

Quando, em 1835, Mouzinho da Silveira declarou no parlamento que “os benefícios pessoais não podem constituir o projeto político da Nação”, estava a enunciar uma proposição fundamental. Liberal “dos sete costados”, tal como Alexandre Herculano, a honradez do antigo Ministro da Fazenda de D. Pedro IV obrigava-o a distinguir o serviço público na defesa de interesses comuns, dos negócios privados e das conveniências particulares. A consciência do seu dever trouxe-lhe a consagração dos imortais, mas o abandono das glórias terrestres. Morreu pobre e injustiçado. Prevaleceu, no entanto, o princípio liminar da separação entre a esfera pública e o domínio privado como garantia essencial do funcionamento das modernas sociedades democráticas.

Também o famoso pensador político e historiador francês Alexis de Tocqueville criticava o conúbio dos poderes político e económico durante a Monarquia de Julho em França (1830-1848), invetivando a postura da grande burguesia que, “tendo-se tornado governo, arvorou uma atitude de indústria privada; isolou-se no seu poder e, logo a seguir, no seu egoísmo, pensando cada um dos seus membros mais em seus negócios privados do que nos negócios públicos; mais em seus gozos do que na grandeza da nação”.

Infelizmente continuaram a abundar exemplos desta intimidade perversa e sempre prejudicial para as populações. E não falamos só das evidentes cumplicidades que governos como os de Berlusconi em Itália, Sarkozy em França ou – à escala – José Sócrates em Portugal, mantinham com o mundo dos negócios. Ou da vertigem suicidária a que conduziram os investimentos especulativos do Estado em prol de interesses privados e das brutais dívidas tóxicas acumuladas pelos países, sob a batuta diligente das famigeradas agências de rating (vale a pena atentar, a este propósito, na explicação cristalina de Domingos Ferreira, professor/investigador da Universidade do Texas e da Universidade Nova de Lisboa no Público de 4/5/12: “No que toca à canibalização económica de um país a fórmula é simples: o Goldman [referência ao Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento do mundo], com a cumplicidade das agências de rating, declara que um governo está insolvente, como consequência as yields [rendas do retorno dos investimentos] sobem e obriga-o, assim, a pedir mais empréstimos com juros agiotas. Em simultâneo impõe duras medidas de austeridade que empobrecem esse país. De seguida, em nome do aumento da competitividade e da modernização, obriga-o a abrir os seus setores económicos estratégicos (energia, águas, saúde, banca, seguros, etc) às corporações internacionais. Como as empresas nacionais estão bastante fragilizadas e depauperadas pelas medidas de austeridade e da consequente recessão, não conseguem competir e acabam por ser presa fácil das grandes corporações internacionais.” Eficaz, não é?!).

Não nos referimos só ao escandaloso condicionamento das políticas públicas europeias pelos gigantes financeiros ou empresariais como o Goldman Sachs, o Citygroup, a Baker & McKenzie ou a Wells Fargo, apostados, por exemplo, na desestabilização do euro. Basta lembrar a insidiosa infiltração dos seus quadros nas grandes instituições políticas e financeiras internacionais, ocupando os altos cargos dirigentes do FMI, com Christine Lagarde, para já não falar do Banco Central Europeu, com Mario Draghi, ou do próprio governo de Itália, com Mario Monti, bem como uma plêiade de consultores da própria União Europeia. Ou dos inúmeros casos de reciclagem de ex-governantes no mundo empresarial (com vantagens acrescidas para uns e para outros, está bem de ver).

Falamos sobretudo da profunda crise política das democracias induzida por semelhante statu quo,refletida na justa preocupação de François Hollande, durante a sua campanha eleitoral à presidência francesa, no discurso proferido a 22 de janeiro em Bourget (Seine-Saint-Denis): “Não tem nome, não tem rosto, não tem partido, nunca apresentará a sua candidatura e nunca, por isso, será eleito. Este adversário é o mundo da finança.” Será que os dois mundos estão de tal forma misturados que a nossa preocupação cívica terá que passar também pelo combate político decidido às iniciativas eminentemente políticas provenientes da esfera empresarial, para impedir uma espécie de usurpação da política pela economia?

O nosso país assistiu recentemente a mais um episódio desse desiderato, com a badalada promoção dos supermercados “Pingo Doce” no passado dia 1 de maio, Dia do Trabalhador. A data escolhida pelo grupo Jerónimo Martins para esta manobra de marketing comercial não foi um acaso (está bem de ver que podia ter optado por um outro feriado ou um qualquer domingo, com a garantia de obter iguais ou superiores proventos). Constituiu, pelo contrário, uma atitude política premeditada de ataque aos direitos dos trabalhadores e a tudo o que esta efeméride representa de património civilizacional de progresso e justiça social. Colocou-se, assim, em pleno campo da luta político-ideológica. Para além de ter obrigado os seus funcionários a trabalhar num dia feriado que lhes é dedicado e internacionalmente reconhecido, Alexandre Soares dos Santos usou os 50% de desconto do preço dos produtos das suas lojas da maneira mais sórdida possível, explorando a miséria dos consumidores e humilhando a condição laboral. Quis mostrar quem manda, quem tem o poder real, quem é o “dono da política”. Ultrapassaram-se, desta forma, os limites da decência. Atitude que, aliás, está em linha com a sua visão da sociedade e a sua noção de responsabilidade social, bem expressa na deslocalização, há uns meses, da sede do grupo empresarial que dirige para a Holanda, com a assumida e anunciada (o que não deixa de ser espantoso!) intenção de fugir aos impostos em Portugal, ou no desprezo e discricionariedade com que trata os seus fornecedores, com majestáticas dilações de pagamentos e acusações de práticas de dumping, ou na generalizada precariedade do trabalho e salários de miséria praticados nas suas empresas.

Que esta estratégia política tenha tido um assinalável êxito económico ninguém contesta, levando mesmo o jornal i do dia seguinte a exibir como manchete de primeira página, “1º de maio, dia do consumidor”. Mas que se tratou de uma completa subversão do que deve distinguir a atividade empresarial da esfera da ação política parece, do mesmo modo, evidente. Como diz Tiago Mota Saraiva, na coluna semanal que escreve no i (5/5/12), “A Jerónimo Martins institucionalizou-se como instrumento de combate político. Soares dos Santos […] é visto como alguém que podia ser negreiro em tempos de escravatura, vendedor de armas no Médio Oriente ou construtor de caixões depois de um terramoto. A sua imagem pública é a de um velho vampiro que traiu o país e vive da desgraça alheia.”

Ora, se a democracia não for mais do que um negócio, alguém poderá vir a ganhar muito com isso, mas certamente a democracia deixou de existir.

 

Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 20:32
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Novembro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
14
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30


posts recentes

Relações Luso-Nipónicas –...

INTERROGAÇÕES

A transformação digital n...

Carta Aberta ao universo ...

FACES DA DESIGUALDADE

A COMPARAÇÃO

A FUSÃO

AJUSTE DE CONTAS

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

arquivos

Novembro 2024

Outubro 2024

Setembro 2024

Agosto 2024

Junho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub