Quando, em 1835, Mouzinho da Silveira declarou no parlamento que “os benefícios pessoais não podem constituir o projeto político da Nação”, estava a enunciar uma proposição fundamental. Liberal “dos sete costados”, tal como Alexandre Herculano, a honradez do antigo Ministro da Fazenda de D. Pedro IV obrigava-o a distinguir o serviço público na defesa de interesses comuns, dos negócios privados e das conveniências particulares. A consciência do seu dever trouxe-lhe a consagração dos imortais, mas o abandono das glórias terrestres. Morreu pobre e injustiçado. Prevaleceu, no entanto, o princípio liminar da separação entre a esfera pública e o domínio privado como garantia essencial do funcionamento das modernas sociedades democráticas.
Também o famoso pensador político e historiador francês Alexis de Tocqueville criticava o conúbio dos poderes político e económico durante a Monarquia de Julho em França (1830-1848), invetivando a postura da grande burguesia que, “tendo-se tornado governo, arvorou uma atitude de indústria privada; isolou-se no seu poder e, logo a seguir, no seu egoísmo, pensando cada um dos seus membros mais em seus negócios privados do que nos negócios públicos; mais em seus gozos do que na grandeza da nação”.
Infelizmente continuaram a abundar exemplos desta intimidade perversa e sempre prejudicial para as populações. E não falamos só das evidentes cumplicidades que governos como os de Berlusconi em Itália, Sarkozy em França ou – à escala – José Sócrates em Portugal, mantinham com o mundo dos negócios. Ou da vertigem suicidária a que conduziram os investimentos especulativos do Estado em prol de interesses privados e das brutais dívidas tóxicas acumuladas pelos países, sob a batuta diligente das famigeradas agências de rating (vale a pena atentar, a este propósito, na explicação cristalina de Domingos Ferreira, professor/investigador da Universidade do Texas e da Universidade Nova de Lisboa no Público de 4/5/12: “No que toca à canibalização económica de um país a fórmula é simples: o Goldman [referência ao Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento do mundo], com a cumplicidade das agências de rating, declara que um governo está insolvente, como consequência as yields [rendas do retorno dos investimentos] sobem e obriga-o, assim, a pedir mais empréstimos com juros agiotas. Em simultâneo impõe duras medidas de austeridade que empobrecem esse país. De seguida, em nome do aumento da competitividade e da modernização, obriga-o a abrir os seus setores económicos estratégicos (energia, águas, saúde, banca, seguros, etc) às corporações internacionais. Como as empresas nacionais estão bastante fragilizadas e depauperadas pelas medidas de austeridade e da consequente recessão, não conseguem competir e acabam por ser presa fácil das grandes corporações internacionais.” Eficaz, não é?!).
Não nos referimos só ao escandaloso condicionamento das políticas públicas europeias pelos gigantes financeiros ou empresariais como o Goldman Sachs, o Citygroup, a Baker & McKenzie ou a Wells Fargo, apostados, por exemplo, na desestabilização do euro. Basta lembrar a insidiosa infiltração dos seus quadros nas grandes instituições políticas e financeiras internacionais, ocupando os altos cargos dirigentes do FMI, com Christine Lagarde, para já não falar do Banco Central Europeu, com Mario Draghi, ou do próprio governo de Itália, com Mario Monti, bem como uma plêiade de consultores da própria União Europeia. Ou dos inúmeros casos de reciclagem de ex-governantes no mundo empresarial (com vantagens acrescidas para uns e para outros, está bem de ver).
Falamos sobretudo da profunda crise política das democracias induzida por semelhante statu quo,refletida na justa preocupação de François Hollande, durante a sua campanha eleitoral à presidência francesa, no discurso proferido a 22 de janeiro em Bourget (Seine-Saint-Denis): “Não tem nome, não tem rosto, não tem partido, nunca apresentará a sua candidatura e nunca, por isso, será eleito. Este adversário é o mundo da finança.” Será que os dois mundos estão de tal forma misturados que a nossa preocupação cívica terá que passar também pelo combate político decidido às iniciativas eminentemente políticas provenientes da esfera empresarial, para impedir uma espécie de usurpação da política pela economia?
O nosso país assistiu recentemente a mais um episódio desse desiderato, com a badalada promoção dos supermercados “Pingo Doce” no passado dia 1 de maio, Dia do Trabalhador. A data escolhida pelo grupo Jerónimo Martins para esta manobra de marketing comercial não foi um acaso (está bem de ver que podia ter optado por um outro feriado ou um qualquer domingo, com a garantia de obter iguais ou superiores proventos). Constituiu, pelo contrário, uma atitude política premeditada de ataque aos direitos dos trabalhadores e a tudo o que esta efeméride representa de património civilizacional de progresso e justiça social. Colocou-se, assim, em pleno campo da luta político-ideológica. Para além de ter obrigado os seus funcionários a trabalhar num dia feriado que lhes é dedicado e internacionalmente reconhecido, Alexandre Soares dos Santos usou os 50% de desconto do preço dos produtos das suas lojas da maneira mais sórdida possível, explorando a miséria dos consumidores e humilhando a condição laboral. Quis mostrar quem manda, quem tem o poder real, quem é o “dono da política”. Ultrapassaram-se, desta forma, os limites da decência. Atitude que, aliás, está em linha com a sua visão da sociedade e a sua noção de responsabilidade social, bem expressa na deslocalização, há uns meses, da sede do grupo empresarial que dirige para a Holanda, com a assumida e anunciada (o que não deixa de ser espantoso!) intenção de fugir aos impostos em Portugal, ou no desprezo e discricionariedade com que trata os seus fornecedores, com majestáticas dilações de pagamentos e acusações de práticas de dumping, ou na generalizada precariedade do trabalho e salários de miséria praticados nas suas empresas.
Que esta estratégia política tenha tido um assinalável êxito económico ninguém contesta, levando mesmo o jornal i do dia seguinte a exibir como manchete de primeira página, “1º de maio, dia do consumidor”. Mas que se tratou de uma completa subversão do que deve distinguir a atividade empresarial da esfera da ação política parece, do mesmo modo, evidente. Como diz Tiago Mota Saraiva, na coluna semanal que escreve no i (5/5/12), “A Jerónimo Martins institucionalizou-se como instrumento de combate político. Soares dos Santos […] é visto como alguém que podia ser negreiro em tempos de escravatura, vendedor de armas no Médio Oriente ou construtor de caixões depois de um terramoto. A sua imagem pública é a de um velho vampiro que traiu o país e vive da desgraça alheia.”
Ora, se a democracia não for mais do que um negócio, alguém poderá vir a ganhar muito com isso, mas certamente a democracia deixou de existir.
Hugo Fernandez