Quando Étienne de La Boetie escreveu o Discurso sobre aServidão Voluntária em meados do século XVI, queria denunciar o que aparentava ser um terrível paradoxo: o sacrifício voluntário da liberdade individual. Questionava-se o filósofo e humanista francês sobre as razões que levariam povos inteiros a submeter-se aos ditames de uns poucos governantes que tiranicamente impunham a sua vontade. A resposta encontrada demonstra a sua profunda repulsa perante todas as formas de opressão; com efeito, para La Boétie, são os próprios Homens que fomentam a sujeição que lhes é imposta porque se deixam dominar, outorgando a alguns um poder que devia ser seu. Uma perversa sensação de tranquilidade, induzida mais pelo hábito do que pela coação, faz com que aquilo que não deveria passar de um estado de exceção – bastava que as populações se rebelassem – se torne regra universal e seja acatada sem conflitos assinaláveis. Da sua reflexão decorreram conclusões perenes para a história do pensamento político, como a irracionalidade da servidão, a proclamação da liberdade e igualdade cívicas e, sobretudo, a ilegitimidade de qualquer poder absoluto. Ressoam, pois, as palavras de La Boétie: “São os povos, portanto, que se deixam, ou melhor, se fazem manietar, pois quebrariam seus laços recusando-se apenas a servir. É o povo que se sujeita e se degola; que, podendo escolher entre ser súbdito ou ser livre, rejeita a liberdade e aceita o jugo, que consente seu mal, ou melhor, persegue-o.”
Da mesma forma, quando Paul Lafargue fez a apologia do Direito à Preguiça, em 1880, no semanário socialista L’Égalité, pretendeu denunciar a servidão do trabalho industrial, com o pesadíssimo lastro de esforço desumano, degradação e miséria a que estavam sujeitos os operários da época. Em vez do tão proclamado “direito ao trabalho”, o genro de Karl Marx avançava um utópico “direito à preguiça”, que se traduziria na construção de uma sociedade mais justa em que o usufruto do tempo livre permitiria o desenvolvimento individual e o gozo da verdadeira felicidade – “saborearem as alegrias terrenas, fazer amor e divertir-se”. À alienação produtivista, de que os únicos beneficiários acabavam por ser os capitalistas que obtinham lucros crescentes com a exploração da enorme massa de assalariados, Lafargue contrapunha o aperfeiçoamento das qualidades morais e capacidades intelectuais de cada um, que só o ócio poderia viabilizar. O dirigente revolucionário termina a sua longa exortação com o seguinte apelo: “Ó Preguiça, tem piedade da nossa longa miséria! Ó Preguiça, mãe das artes e das nobres virtudes, sê o bálsamo das angústias humanas!”
Tanto um como o outro dos autores considerados quiseram ver o outro lado das coisas, aquilo que não se sabe – ou que se não quer saber – mas que, em todos os tempos e lugares, condiciona sobremaneira as opções individuais e as escolhas públicas. Idêntico exercício fez o filósofo português José Gil quando dirigiu a edição comemorativa do 22º aniversário do jornal Público (5/3/2012), em que intentou colmatar o que designou por “vazio das não-notícias” (“Vivemos num país desconhecido”, afirma o filósofo). Nessa “sondagem imaginária”, questionava-se, por exemplo, o ego e a identidade dos portugueses, isto é, “a relação de adesão e pertença subjectiva a uma comunidade” e as energias libertadas (ou constrangidas) pela imagem que cada um tem de si e do país onde vive. Para José Gil, “Todo o discurso em Portugal sobre competitividade, produtividade, empreendedorismo depende de forças vitais e de afectividades. Para que haja coesão, esforço colectivo é preciso que se dê a possibilidade ao ego de se dissolver com entusiasmo num investimento que o ultrapasse e dê força à comunidade.” Questionava-se igualmente “a progressão da dinâmica da pobreza” e uma “verdadeira inventariação dos pobres”, empreendimento tanto mais ousado quanto a ausência de dados decorrerá necessariamente da estrutura não igualitária do nosso sistema sócio-político, baseada no axioma oficial de que “não pode existir uma sociedade sem pobres ou, pelo menos, sem desigualdade”, ao invés de um paradigma alternativo que postule que “a ausência de pobreza deve ser uma condição primeira da existência e da organização social democrática (como pode sobreviver uma sociedade de pobres?)”. Questionava-se ainda a opacidade da organização do Estado e da estrutura política, já que, com um sistema transparente, “o regime teria que ser subvertido porque implicaria uma mudança total da relação entre economia e política, da corrupção em Portugal, do sistema jurídico e do funcionamento político.”, tornando-se promotor de uma verdadeira democracia e sentido de Estado “sem que a função política fosse uma mais-valia de poder.” Ou a ausência de dados fiáveis acerca do que é e como funciona a justiça no nosso país. Ou a subestimação do número de mortes pelo deficiente funcionamento do sistema de saúde português. Ou a especificidade da profissão docente e a importância decisiva da relação professor-aluno na qualidade da educação. Ou a “cultura do medo” instalada – “Para quê ousar afirmar os seus direitos, se todo o sistema entrava a acção?”
Esta tentativa de apresentar uma espécie de “avesso do estado da nação” é-nos dado por uma série de perguntas incómodas que ficaram sem resposta e das quais destacamos algumas: Quantos portugueses vivem ativamente a solidariedade social? Quantos se sentem parte integrante de uma comunidade nacional pela força coletiva que ela lhes transmite? Em que medida o conhecimento da História de Portugal desde o 25 de Abril contribuiu para o seu sentimento de ser português? Prefere admirar ou ser admirado? Gosta mais de si ou da imagem que os outros lhe reenviam de si? Sente-se mais, menos ou tão português agora do que antes da entrada de Portugal na Comunidade Europeia? Gosta mais de si por ser português? Quantos políticos se preocupam com a pobreza? Quantos portugueses tiveram que cortar na alimentação porque o orçamento familiar não chega para pagar as despesas? Quantas crianças não comem quatro refeições diárias? Quantos novos critérios deveriam ser acrescentados à atual definição oficial de pobreza? Quantos deputados usaram informação secreta em benefício próprio? Quantos portugueses se sentem representados pelos deputados? Quantos documentos estão em segredo de Estado? E que documentos? Quantos detentores de cargos públicos tentaram manipular jornalistas na democracia? Quantos políticos têm negócios em offshores? Quantos ministros foram ocupar cargos de chefia em grandes empresas depois de abandonarem o governo? Qual a percentagem de portugueses que subornaria alguém? Quanto custa em média ao Estado um julgamento de um pequeno delito? Quanto tempo demora a ser julgado? Quantos políticos condenáveis por tráfico de influências, corrupção e peculato foram realmente investigados? Quantos foram condenados? Quantas mulheres foram sexualmente abusadas ao longo da vida? Quantos pedófilos foram condenados? Quantas pessoas vão morrer até ao fim deste ano por não terem acesso aos tratamentos adequados? Quantos portugueses morrem por não serem atendidos a tempo? Até que ponto em Portugal as taxas de mortalidade variam em função das diferenças sociais? Quantas pessoas vivem mal por ignorarem que o seu problema é do foro psiquiátrico? Quantos portugueses tomam antidepressivos e ansiolíticos? Quantas mortes por suicídio se devem à depressão? Quantos crimes não chegam a ser denunciados porque as vítimas não acreditam na justiça ou têm medo dos agressores? Quais as competências fundamentais que a escola ignora quando avalia os alunos? Quanto é que os alunos realmente aprendem das matérias que lhes são ensinadas? Que peso tem a relação aluno-professor na definição das políticas educativas? Quantas horas os responsáveis estimam necessárias para os professores prepararem as lições? Que consciência têm os responsáveis pelas políticas educativas da especificidade da profissão docente? Quantos alunos desistem do ensino superior por razões económicas? Quantos portugueses não têm medo: da autoridade? Do Estado? Dos políticos? De perder o emprego? De arriscar? De assumir responsabilidades?
O objetivo destas interrogações – e muitas outras, seguramente, poderiam ser consideradas – é o de abrir linhas de fuga, incitar a pensar de forma diferente, desencadear o que o autor caracteriza como “poderosas forças de criação”. Para José Gil, sobretudo, “Não estamos condenados ao que julgamos que nos condenaram. Só assim poderemos conceber reformas radicais que libertem as energias e mudem o país.”
Hugo Fernandez