O sôr Álvaro, o Gasparoika, o cantor Passos, o dono da marquise que escreve prefácios ressabiados e teoriza sobre a felicidades das vacas e o seu sindicato do BPN... o trabalhador incansável António Borges, o "jovem" Catroga (que começa a vida a ganhar 50 mil euros mensais!) ah! e ainda o iminente Relvas, desconhecem que o homem precisa acima de tudo, de comer, beber, ter onde habitar e com que se vestir, antes de dedicar à política, à ciência, à arte, à religião; e que a produção dos meios materiais e imediatos de vida, o grau de progresso económico da cada povo ou da cada época , é a base sobre qual depois se desenvolvem as instituições do Estado, as conceções jurídicas, a arte e inclusive as ideias religiosas das pessoas desse povo ou dessa época. O que é que isto tem de errado?! Quais são as dúvidas sobre estas palavras singelas?Será que desconhecem o que é essencial e até simples? Bem sabemos que o que é simples, para o ser, é necessário pensarmos muito e dá muito trabalho depois a fazer!
Estamos numa verdadeira transição histórica. De um modo ou de outro, é o fundamento das coisas que volta à discussão. É aquela extrema concentração da riqueza imaterial que consiste no controlo das consciências. O poder dos poderes. É a visão da realidade como o meio mais poderoso para controlar a ação humana. Em suma, o chamado “pensamento único”, ou seja, “it’s the economy, stupid”. Mas, afinal, não se trata de nenhuma novidade; de diferentes modos e em diferentes épocas sempre houve um “pensamento único”. Pensemos na Idade Média, quando durante séculos os artistas — muito variados entre si — pintavam um só tema: as histórias de Cristo. As ideias dominantes — dizia Marx — são as ideias da classe dominante.
O cidadão perdeu a sua soberania (os direitos iguais, a proteção do próprio Estado) e que se afirmou uma nova “teologia”. A ideia segundo a qual a sociedade, isto é, aquela rede de laços históricos, culturais e mesmo ancestrais que chamamos sociedade não existe. Só existem os indivíduos, imersos num eterno presente. E estes indivíduos, sozinhos, sem identidade e sem passado, definem-se de um único modo: na relação que têm com o dinheiro. Os famosos mercados, que não casualmente são indicados com a reverência e a submissão que se reservam às divindades, as quais — como sabemos — são “ocultas” e até caprichosas, como eram os antigos deuses que habitavam o Olimpo. Um Olimpo que, desta vez, reside parcialmente em Wall Street (Berlim quer o seu qinhão novamente!) e parcialmente nas mãos poderosas de quem controla as redes de comunicação, das linguagens, do imaginário. Referimo-nos aqui àquela grande ideologia segundo a qual acabaram as ideologias e, portanto, os mercados governam, os técnicos administram, os políticos são instrumentos dos interesses, os "paineleiros" vão à televisão para se tornarem alvo de zombaria.
O que é que está em jogo, que tipo de ordenamento da vida social está em discussão, quais os compromissos históricos radicais que se estão a desmoronar? As palavras não correspondem às coisas. Por trás da abstrusa linguagem dos economistas que nos falam de spreads, existem factos grandiosos. Entre outros, a crise da hegemonia americana, com a consequência da rutura daquilo que foi até agora a “ordem” económica mundial. A guerra das moedas é uma das consequências: uma espécie de guerra mundial até agora incruenta. Quanto tempo vai durar a senhoriagem do dólar? E, se o euro sobreviver, qual será o lugar da Europa no mundo de amanhã? Em todo caso, estamos a assistir — como muitos já repetem — ao fim da chamada “ocidentalização do mundo”. A saber, ao fim daquele tempo e daquele lugar histórico que viram nascer o Estado, os direitos do homem, a ideia de progresso, Karl Marx e Adam Smith, o Iluminismo e as guerras de religião. Este é o cenário no qual deve ser colocado o reformismo - novos patamares do compromisso político e social que são a base da democracia. É tempo de uma nova subjetividade política e cultural — o reformismo — voltar a campo para nos restituir o sentido daquilo que aconteceu, por que aconteceu e quais as forças que é preciso controlar. O inimigo não são os bancos como instrumento essencial para fornecer crédito à economia, mas o modo pelo qual uma oligarquia financeira criou um "ónus" imenso (em seu proveito) que pesa sobre o mundo. Os que foram citados logo no início são alguns dos testas de ferro dessa oligarquia.
Devemos reapropriar-nos das nossas vidas.
O fotógrafo espanhol Samuel Aranda, ao serviço do prestigiado periódico The New York Times, foi o grande vencedor da edição 2011 da World Press Photo, com o retrato de uma iemenita a segurar nos seus braços um familiar ferido na sequência de confrontos com as forças policiais do ditador Ali Abdullah Saleh. A imagem foi captada no passado dia 15 de outubro de 2011 em Sanaa, capital do Iémen, no interior de uma mesquita usada como enfermaria improvisada pelos manifestantes anti-regime.
Mas o abraço desta mulher a este homem desprotegido e carente tem algo de profundamente inquietante. Coberta com panos negros, a mulher dir-se-ia um fantasma a confortar o seu parente. O ato é, ainda assim, de uma enorme ternura e despojamento, um sinal sincero de amor humano, a expressão do que alguns já apelidaram de “Pietà moderna”. Porque se esconde então a mulher? Esconder-se-á de si? Mas porquê, se os seus sentimentos são tão nobres? Esconder-se-á dos outros? Mas que sociedade é esta que obriga grande parte dos seus cidadãos a esta espécie de anonimato existencial? No passado dia dezasseis de fevereiro, três jornalistas do diário tunisino Attounissia foram detidos em Túnis por terem reproduzido a imagem de um abraço sensual do jogador de ascendência tunisina do Real Madrid, Sami Khedira, e da sua namorada alemã, a modelo Lena Gercke. As autoridades judiciais da Tunísia consideraram que a fotografia ofendia a moral pública. Mas poderão verdadeiramente ser condenáveis as manifestações de amparo, carinho ou amor? É a primeira vez que jornalistas são detidos por conteúdos publicados desde a “revolução de jasmin” que depôs o ditador Zine Ben Ali, revolução que alastrou a grande parte do mundo árabe num movimento de contestação generalizado aos regimes ditatoriais vigentes e que viria a ficar conhecido por “Primavera Árabe”. Mas será mesmo Primavera?
Diz-se que uma imagem vale mais do que mil palavras. Resta-nos a estupefação e a sabedoria serena de Alves Redol: “Talvez (…) o embalar da esperança valha mais do que o desespero da realidade desesperada.”
Hugo Fernandez