"Não é possível ter uma recuperação económica assente perpetuamente num desequilíbrio externo alimentado pelo défice orçamental. E economias pequenas e abertas não sustêm o crescimento da despesa interna se não forem estruturalmente sólidas. Parece técnico mas é bastante simples. Krugman explicaria em duas penadas. Ponham lá os economistas com chapéu de burro no canto da sala, encerrem-nos nas masmorras ao pé dos políticos, façam-lhes maldades e vinganças - mas obriguem-nos a estudar a História!"
(http://m.jornaldenegocios.pt/opn.aspx?ID=540947)
"Os economistas tendem a considerar que existem tendências de evolução de determinados fenómenos ao longo dos tempos (como, por exemplo, a tendência para o aumento da produção ou da população). À História e aos historiadores económicos cumpre fundamentalmente um papel acessório à abordagem nomotética e à formalização matemática: cabe-lhes identificar regularidades no comportamento das variáveis económicas no tempo, as quais correspondem àquelas tendências seculares; depois de identificadas, tais regularidades são reduzidas a parâmetros que pretendem representar toda a evolução histórica relevante (onde as supostas ‘irregularidades’ não têm lugar)."
(http://iscte.pt/~rpme/RPM_1998_Vertice.pdf)
Num tom simultaneamente provocador e perspicaz, o multimilionário Warren Buffet, proferiu a seguinte afirmação: “Isto é uma luta de classes e a minha, a dos ricos, está a ganhar.” (Courrier Internacional, maio 2011). A realidade parece estar a dar-lhe razão. Com efeito, os rendimentos de 1% dos mais ricos da sociedade norte-americana subiram 18%, permitindo-lhes controlar agora 40% da riqueza dos E.U.A (sendo que, em 1979, os números eram de 21% e em 2003 de 29%) Quem o disse foi o prémio Nobel da Economia, Joseph Stiglitz, em artigo recente. Aliás, a análise feita no 15º World Wealth Report elaborado pela Merril Lynch e pela Capgemini não deixa dúvidas: a fortuna global dos chamados high net worth individuals (isto é, aqueles que têm ativos iguais ou superiores a um milhão de dólares) atingiu em 2010 o montante de 42,7 biliões de dólares, quando em 2008 era de 32,8 biliões. Por sua vez, a riqueza acumulada por aqueles indivíduos com ativos iguais ou superiores a 30 milhões de dólares (que representam apenas 0,9% dos HNWI) cresceu o ano passado, em termos mundiais, 11,5% (Público, 23/6/2011). Nos E.U.A, os ganhos dos hiper-ricos (o top constituído por 0,01% da população) já tinha passado, de 1970 para 1998, de 50 vezes o ordenado médio para 250 vezes, sendo que o vencimento médio dos executivos mais bem pagos passou, nesse período de tempo, de cerca de $1.25 milhões para quase $40 milhões (Atkinson, 2006). Em contrapartida, os 10% da população mais pobre em 1980 recebeu apenas 4% do rendimento disponível para, no final dos anos 90, baixar para 3% (Diamond; Giddens, 2006), situação que não tem sofrido alterações significativas até aos dias de hoje. Que sentido faz tamanha desigualdade?
Também em Portugal, de 2010 para 2011, os 25 indivíduos mais ricos aumentaram as suas fortunas para um montante próximo dos 18 mil milhões de euros, precisamente num país onde alastra o desemprego e a pobreza atinge níveis record. No seu conjunto, estas fortunas representam já 10,1% do PIB nacional (Focus, agosto 2011). Portugal situava-se em 2009, de acordo com os dados mais recentes do Eurostat, na 4º posição da União Europeia dos países com maiores índices de desigualdade social, atingindo 0,33 (sendo a média da UE dos 27 de 0,30). Da mesma forma, os dados revelados no passado dia 5 de dezembro no relatório da OCDE intitulado Divided We Stand: Why Inequality Keeps Rising colocam o nosso país no 5º lugar da desigualdade entre os 34 países da organização. De resto, este relatório concluiu que o fosso entre os mais ricos e os mais pobres atingiu o nível mais alto dos últimos 30 anos (Público, 6/12/11).
Os números são elucidativos: há 79 milhões de europeus a viver abaixo do limiar da pobreza e 43 milhões passam sérias dificuldades de sobrevivência. Parece até que o tempo voltou para trás. Nos EUA, em 2010, 46,2 milhões de cidadãos viviam abaixo do limiar da pobreza, igualando o número atingido no ano de 1959. O rendimento da generalidade das famílias americanas regressou aos valores de 1966, situação suficientemente dramática para o prestigiado (e insuspeito!) The New York Times falar de um estado “Nunca visto, desde a Grande Depressão dos anos 1930”. Em Portugal, no ano de 2008, havia perto de 20% de pobres, isto é, aqueles que têm rendimento inferior a cerca de 400 euros mensais (calculando-se o limiar da pobreza em 60% do rendimento médio após transferências sociais). Em 2012, o nível de vida da generalidade dos portugueses será idêntico ao de há 30 anos. Estamos todos a empobrecer a olhos vistos… exceto uns poucos.
Para estes, a crise afinal compensa! E o sistema instalado também. É que, como refere Serge Halimi, “Três anos de reuniões do G20 que visavam criar uma «nova sinfonia planetária» conservaram portanto intacto um sistema que mistura desregulação bancária, prémios faraónicos para os geniozinhos da «inovação financeira» e pagamento de todos os danos que eles causam aos contribuintes e aos Estados.” (Le Monde Diplomatique, ed. port., maio 2011). Os socialistas franceses denunciam mesmo o facto de um ano após a crise do subprime os governos terem dado mais dinheiro aos bancos e instituições financeiras do que o montante destinado ao auxílio aos países pobres nos últimos 50 anos.
O que parece certo é que o crescimento das desigualdades se baseia no tandem do aumento dos rendimentos dos indivíduos mais ricos e na concomitante deterioração do rendimento daqueles mais desfavorecidos, contrariando desde logo o princípio do trickle down efect segundo o qualo crescimento da riqueza da elite arrastaria necessariamente a prosperidade de toda a sociedade, beneficiando inclusive aqueles que se encontram na base da pirâmide social. Como refere o economista e professor do ISEG, Carlos Farinha Rodrigues, entre os anos 70 do século XX e a primeira década deste século – utilizando-se a habitual escala de Gini que mede a desigualdade da distribuição de rendimento entre 0 (rendimento igual para todos) e 1 (se um único indivíduo auferisse todo o rendimento da sociedade) – a desigualdade passou, por exemplo, de 0,32 para 0,38 nos EUA, de 0,28 para 0,34 no Reino Unido ou de 0,21 para 0,23 na Suécia (Visão, Novembro de 2011).
Esta situação remete-nos para a análise que Rui Tavares fez na sua habitual crónica no jornal Público (20/4/2011) onde caracteriza a evolução capitalista em três grandes etapas: o governo “para os ricos”, o governo “pelos ricos” e o governo “dos ricos”. Exploremos o sugerido no texto. A primeira fase corresponderia ao que aquele autor designa por governo “para os ricos”, em que a prosperidade daqueles, pelo efeito de uma qualquer mão invisível, acabaria por beneficiar o conjunto da sociedade. Trata-se do velho mito liberal do mercado auto-regulado e do Estado “guarda-noturno” que, como se viu no primeiro terço do século XX, não resultou, extremando as disparidades económicas e as injustiças sociais e obrigando a correções moralizadores dos lucros e das perdas, políticas que vieram a ser implementadas pelo chamado “Estado-Providência”.
Mas o poder e a ganância de uns poucos não se podiam quedar nesta solução de compromisso. Logo se manifestaram com cada vez maior virulência os desígnios predadores daqueles que se viriam a denominar neoliberais, que perseguiam o lucro a qualquer custo (custo social, entenda-se). As últimas décadas do século XX foram pródigas em proclamações triunfalistas dos seus corifeus, animados pela débacle de outros modelos societários (nem sempre verdadeiramente alternativos, diga-se em abono da verdade). Foi assim que a teologia do mercado, servida pelo credo thatcheriano do “there is no alternative”, inculcou nas populações a convicção de que a vida de sucesso de uns quantos multimilionários era, afinal, o exemplo a seguir por todos. Rapidamente se esqueceram preconceitos éticos e se enterraram escrúpulos ideológicos, seguindo o raciocínio cândido do “se eles conseguiram…!” Foi o que Rui Tavares designou por governo “pelos ricos”.
Claro que gerir escolas, hospitais, tribunais, cidades ou países como empresas apenas agravou as desigualdades sociais, distorceu os princípios da cidadania democrática e continuou a beneficiar os mesmos de sempre. O estado comatoso a que chegaram as nossas sociedades configura o designado governo “dos ricos”, isto é, em que o governo é deles e em que as populações constituem um fardo a descartar na primeira oportunidade. Para Boaventura de Sousa Santos, “Com o neoliberalismo, o aumento brutal da desigualdade social deixou de ser um problema para passar a ser a solução. A ostentação dos ricos e dos super-ricos transformou-se em prova do êxito de um modelo social que só deixa na miséria a esmagadora maioria dos cidadãos supostamente porque estes não se esforçam o suficiente para terem êxito.”, resultado inevitável da “conversão do individualismo em valor absoluto” (Público, 14/8/11). Alguns super-ricos declaram-se mesmo revoltados com os níveis de pobreza a que chegaram os seus países, “como se a pobreza fosse um pecado de que a sua riqueza está inocente”, na brilhante formulação deste sociólogo (Público, 25/4/11). O que esta situação tem de diferente em relação às outras descritas é que, pela primeira vez, deixou de haver, para a generalidade das pessoas, qualquer possibilidade – por mais ilusória que fosse – de melhoria da sua condição de vida e cada vez mais se impõe, pelo contrário, a certeza da sua degradação, no presente e no futuro. Não será a sua derradeira crise, mas certamente esta é uma crise diferente do sistema capitalista.
Vivemos em tempos de enorme desigualdade na distribuição de rendimentos. Podemos discutir o grau de igualdade que entendemos desejável para a construção de uma sociedade justa, mas o que é inegável e cada vez mais consensual é que o grau de desigualdade existente ultrapassa em muito qualquer razoabilidade civilizacional (pelo menos numa perspetiva de modernidade, isto é, post revoluções liberais dos finais do século XVIII), pondo em risco um desenvolvimento sustentável da humanidade. Aliás, a desmesurada acumulação de riqueza por alguns é não só socialmente injusta, como economicamente pouco razoável, já que uma distribuição mais igualitária do rendimento promoveria necessariamente o consumo e estimularia a economia. Por isso, esta disparidade social ultrapassa a mera lógica da racionalidade económica para configurar uma perspetiva pré-moderna de ostentação e luxo e, por esse meio, de diferenciação e exclusão sociais. Recupera-se desta forma, e em toda a sua plenitude, o estatuto do privilégio. Ora, na exemplar formulação de José Vítor Malheiros, “O luxo não é um direito e não é um direito porque não é indispensável à vida ou à dignidade. É apenas um privilégio. A liberdade é um direito; poder comprar uma jóia é um privilégio. Um direito pertence a todos e não pertence mais a uns do que a outros. Um privilégio é de alguns.” (Público, 9/8/11).
Qual é pois o limite da desigualdade? O limite terá que ser precisamente aquele que distingue o direito do privilégio. Este é um imperativoresponsável, dada a escassez dos recursos disponíveis. É sobretudo um imperativo ético que, salvaguardando a dignidade de todos, situa as desigualdades existentes (relativas, por exemplo, às remunerações laborais) num horizonte de equidade ou justiça social – aquilo que o conhecido sociólogo britânico Thomas Marshall designou por “desigualdade social legitimada” – sem o qual se tornam verdadeiramente insuportáveis. Em todo o caso, é pouco provável – para não dizer intolerável– que o fausto desmesurado de uns poucos e a discriminação indigente da esmagadora maioria dos restantes, possam alguma vez constituir regras de convivência social.
E se… começássemos a pensar na instauração de um “Rendimento Máximo Aceitável”, como avançou no início deste século o filósofo francês Patrick Viveret? Faríamos então jus ao precioso ensinamento do dramaturgo alemão Bertold Brecht: “Temam menos a morte e mais a vida insuficiente.”
Hugo Fernandez