Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Sexta-feira, 4 de Novembro de 2011
NAÇÃO VALENTE

Usando da palavra na conferência “Portugal 2012: os desafios do Orçamento do Estado”, promovido pelo Diário Económico e pela conhecida empresa de consultadoria Ernst & Young, no passado dia 25 de outubro, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho fez uma afirmação de exemplar franqueza: “Só saímos desta situação empobrecendo em termos relativos e até absolutos, porque o Produto Interno Bruto (PIB) já está a cair.” De igual forma, na apresentação do Orçamento do Estado para 2012, no passado dia 17 de outubro, o Ministro das Finanças, Vítor Gaspar, afirmava convicto que “O corte dos subsídios permitirá realizar a agenda de transformação estrutural que é necessária.”, rematando com um taxativo “Chegámos à hora da verdade.” Mais do que um programa de governo, é todo um projeto civilizacional que se coloca em cima da mesa. Está assim em curso aquilo que Boaventura de Sousa Santos designa por “desenvolvimento do subdesenvolvimento” (Visão, 20/10/11) [indispensável, a este propósito, a leitura do livro deste autor, recentemente publicado, Portugal – Ensaio Contra a Autoflagelação, Almedina, Coimbra, 2011, que, para além de um diagnóstico certeiro da atual situação económica e social do país, apresenta um conjunto de propostas de superação da crise que estarão certamente na agenda durante os próximos tempos].

O mote é sobejamente conhecido: tudo é feito para que, o mais rapidamente possível, o país possa “voltar aos mercados”, isto é, ao business as usual, na sustentação de uma ordem económico-financeira global extorsionária e depredadora de todas as potencialidades humanas. Entretanto procura-se assegurar, pela imposição da austeridade mais brutal, os lucros dos especuladores e da alta finança mundial. Com efeito, a ditadura dos mercados financeiros refez – ou melhor, desfez – a economia e transformou profundamente a sociedade e o discurso ideológico dominante que lhe servia de suporte. Desde os anos 80 do século XX que os investimentos financeiros puderam garantir uma rentabilidade máxima e, em grande parte, independente do processo produtivo e da chamada “economia real”. Não é só a exploração do trabalho (através da sua constante desvalorização) que se impôs como matriz do sistema capitalista. A natureza virtual do mercado financeiro e a enorme liberdade e instantaneidade da circulação do capital – as aplicações internacionalizadas dos conhecidos fundos de pensões são um bom exemplo – subordinaram o próprio capital produtivo que, desde os inícios do sistema capitalista, tinha moldado as relações sociais e assegurado a dominação política. A baixa das taxas de lucro, que atingiu picos significativos nas décadas de 1960 e 1970 (sobretudo por efeito da grave crise energética então vivida), é substituído pelos lucros das taxas de juro – através da concorrência dos sistemas fiscais e cambiais – crescentemente compensadores. O extorquir das mais-valias na produção é acrescido do esbulho dos parcos rendimentos auferidos pelos trabalhadores, num jogo de soma-zero em que os prejudicados são sempre os mesmos. Por isso, esta é uma “crise do liberalismo que galvaniza os liberais”, como sintomaticamente se lhe refere o Le Monde Diplomatique (ed. portuguesa, Outubro de 2011). A rentabilização do capital financeiro passou a ser a principal preocupação da atividade económica e o principal objetivo dos governos. Os lucros gerados pela circulação planetária do dinheiro e pela especulação financeira, alimentada pelos empréstimos internacionais – de que as notações das famigeradas agências de rating constituem instrumento essencial –, sustentam o novo poder dos “senhores do mundo”. A globalização é, em grande medida, uma sua consequência. A atual crise sistémica é seguramente uma sua criação.

A Cimeira dos líderes da União Europeia e da zona euro, que decorreu em Bruxelas no final do passado mês de outubro, decidiu a redução da dívida grega, mas fê-lo sem beliscar minimamente os interesses bancários, já que simultaneamente aprovou um plano de recapitalização dos bancos europeus num total de 108 mil milhões de euros destinado a compensar eventuais prejuízos. Aliás, a redução em cerca de 50% dos títulos de dívida pública grega visa sobretudo prevenir os perigos de default, reduzindo os valores em causa para níveis considerados sustentáveis, na ordem dos 120% do PIB grego em 2020, em vez dos 170% que se verificam atualmente. Sem esta resolução, a zona euro ficaria obrigada a assegurar o financiamento de Atenas durante várias décadas. Mais; os riscos de incumprimento devido aos juros especulativos que os credores têm vindo a exigir, obrigou o Fundo Europeu de Estabilização Financeira a acionar um mecanismo de seguro para as emissões de dívida que garante o reembolso, através de verbas comunitárias, de 20% a 25% das eventuais perdas dos investidores. Belo negócio! Para isso, o valor final do FEEF ascenderá ao bilião de euros.

A renitência com que países como Portugal, Espanha e Itália receberam o perdão da dívida grega teve uma explicação politicamente correta: a de que se instale nos investidores a dúvida sobre a capacidade de cumprimento da dívida, provocando novo disparo das taxas de juro dos empréstimos entretanto contraídos. Por isso o primeiro-ministro português rejeitou, desde logo, a ideia de uma reestruturação da dívida também para Portugal, afirmando que “Esse não é o cenário que o país deseja” já que, “enquanto os credores tivessem memória, não emprestariam nem mais um euro.” Pelo contrário, Pedro Paços Coelho não apresentou quaisquer reservas ao plano europeu de recapitalização da banca. Aliás, não há uma palavra a propósito da inexistência ou insignificância da carga fiscal sobre as transações e mais-valias financeiras, sobre os lucros das empresas ou sobre as grandes fortunas e o seu património, para não falar de medidas destinadas a um combate sério à fuga e evasão fiscais. Abundam, isso sim, as referências à austeridade generalizada e ao desmantelamento dos mecanismos de proteção social. Como sentenciou o primeiro-ministro português “não vale a pena fazer demagogia”, porque “nós sabemos que só vamos sair desta situação empobrecendo”, fazendo-nos lembrar o tristemente célebre ideal dos “pobrezinhos, mas honrados” de outros tempos. Do que não restam dúvidas é de que os poderes e interesses que nos arruinaram, vêem afinal compensado o seu esforço.

A euforia especulativa dos mercados tem vindo a obrigar vários países europeus (Grécia, Irlanda, Portugal, perspetivando-se já a possibilidade da Espanha e da Itália lhes seguirem o caminho), desde 2009, a recorrer aos planos de resgate das suas dívidas soberanas impostos pela troika constituída pelo Banco Central Europeu (BCE), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), sob a eufemística designação de “planos de ajustamento estrutural”. Sabe-se que, no caso português, a derrapagem da dívida pública a partir de 2008 se deveu, em grande parte, ao resgate do próprio sistema financeiro (o caso BPN – o tal que o ministro das Finanças dos governos Sócrates, Teixeira dos Santos, assegurou que não ia custar “um cêntimo” aos contribuintes – é exemplo sobejamente conhecido) e ao forte endividamento externo dos particulares, eles próprios envolvidos, por intermédio de aplicações irresponsáveis de bancos e outras instituições financeiras, na bolha especulativa dos créditos subprime com origem nos EUA, iniciativas sempre apresentadas sob a capa diáfana de “medidas de estímulo à economia”.

O que se seguiu é, infelizmente, do conhecimento de todos: uma espiral de aumento de impostos, redução de salários, precariedade e desemprego, desmantelamento do Estado social e do aparelho produtivo. A dívida pública permanece em patamares insustentáveis (círculo vicioso em que os juros exorbitantes tornam o incumprimento da dívida cada vez mais plausível, justificando o aumento exponencial dos prémios de risco por parte dos credores e a consequente subida vertiginosa das taxas de juro dos empréstimos a efetuar), sem criar quaisquer perspetivas de recuperação económica (até por efeito da retração do consumo) e, pior que isso, forçando à recessão económica, a défices orçamentais excessivos, à destruição acelerada do tecido social e, em última instância, à possibilidade de colapso e inviabilidade dos próprios países. A passagem do setor produtivo do Estado para as mãos de particulares, cujas empresas são vendidas sob pressão e a preços de saldo altamente vantajosos para os compradores, é o corolário deste caminho, cujo objetivo primordial é a minimização, a todo o custo, das perdas dos credores e dos mercados internacionais de capitais, bem como a recapitalização da banca, em claro detrimento da defesa dos interesses e da qualidade de vida das populações, colocando a questão da dívida pública no seu devido lugar. O serviço da dívida passa a esmagar o investimento público e a inviabilizar qualquer hipótese de relançamento económico.

Não admira, por isso, a provocação sarcástica da jornalista São José Almeida quando, na sua habitual crónica no jornal Público (22/10/11) – significativamente intitulada “Queimar etapas” – questiona “Por que é que o Governo não lança o debate sobre os benefícios para o sistema económico e financeiro do regresso de formas de trabalho escravo? Com o ritmo despudorado com que o poder político está a queimar etapas na persecução do objetivo de baixar o nível de vida das populações europeias, por que não avançar mais rápido ainda e discutir já o interesse e a possibilidade de uso de formas de trabalho não remunerado?” Até o insuspeito Vasco Graça Moura declarava no Diário de Notícias (26/10/11) que “A brutalidade no plano fiscal e na expropriação bárbara dos recursos das famílias só vai contribuir para socializar de vez a miséria e a desgraça.”

A preocupação exclusiva com aquilo que o economista francês Jean-Marie Harribey designa por “criação de valor para o acionista” (Le Monde Diplomatique, cit.) leva, por outro lado, a um impasse no modelo capitalista. Porque é necessariamente restrito (escassez de recursos), porque é desregulado à exaustão (o descalabro de 2008 é disso prova), porque é ainda mais arbitrário e injusto do que fases anteriores do capitalismo e porque se torna suicidário a prazo… cada vez mais curto (a submissão das populações tem limites). De um paradigma produtivista passamos a um paradigma especulativo, tão bem ilustrado na expressão “economia de casino”. Mas isto, verdadeiramente, não é vida.

Temos assim em Portugal um governo que tem como objetivo empobrecer a população. Quebra-se, desta forma, o contrato implícito entre governantes e governados, que assenta precisamente na defesa do “bem comum” e na promessa – ainda que demasiadas vezes não cumprida – da melhoria das condições de vida dos conterrâneos. É algo de inédito e que não tem paralelo na nossa história. A cereja no topo do bolo foram as recentes declarações no Brasil do secretário de Estado da Juventude e do Desporto, Alexandre Miguel Mestre, que apelou à emigração dos jovens: “Se estamos no desemprego, temos de sair da zona de conforto e ir para além das nossas fronteiras”, disse o ilustrado governante, que falava para uma plateia de representantes da comunidade portuguesa e jovens luso-brasileiros, em São Paulo (Lusa, 29/10/11). Ora, alguém pode explicar a esse responsável político espertalhaço que não só nenhum desempregado está numa “zona de conforto”, como a emigração em massa dos jovens de um país significa, antes de mais, a inadequação do modelo de sociedade adotado nesse país, bem como o evidente desajustamento das políticas públicas aí implementadas que, em última análise, poderão levar à sua ruína? Como justamente reconheceu Fernando Sobral no Jornal de Negócios (28/10/11), “O essencial desta crise é que ela decretou o fim do futuro.” Até ver…

 

Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 18:50
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