O MONSTRO
"Princeps legibus solutus
Nesta insultuosa contenda sobre a "crise", onde o malabarismo verbal convida muitos gênios e tudólogos da felicidade económica - quase todos ex e actuais funcionários públicos (como o inefável Eduardo Catroga ou o funcionário público VPV) -, a perorar o amanhã que pronunciará a eficiência económica indígena (com Musgrave, claramente, alheio a essa douta actividade de afectação e estabilização de recursos) e a pensar os bens públicos e o nível da sua despesa (e como mediram o seu output? Oh! respeitáveis sábios) com atrevidos óculos "libarais", a nossa putativa remissão será sempre essa comédia ingénua (ou esse cavar de vida) de a tudo isso complacentemente assistirmos, provincianos que somos.
O túmulo que nos espera, fruto desse fervor neoliberal talhado por um curioso grupelho provocatório & de ambição desmedida, cerra (de vez) a nossa incontornável falta de assombro cívico, de vigor para com o progresso e a evolução social e ornamenta a nossa frontaria duma colossal falta de liberdade e exercício cívico, liberdade essa que, aliás, nunca soubemos (ou quisemos) exercer. O cortejo fúnebre do rebanho dos eleitores da governação será (é, já!) colossal.
O enxertado governo (ou agremiação de suicidas) que preside à paróquia age numa vaidade escouceante e total impunidade. Na sua singular agonia, a gerência da fazenda é, em modéstia e por piedosa falha de verve intelectual, administrada por duas figuras aventureiras e obscuras, ambas curveteadas a essa "grande arte de viver" (Cícero) da ortodoxa troika.
Um tacteia a intimidade doméstica do país em sucessivas mentiras programadas (batendo copiosamente o eng. Sócrates) e, em messiânicos discursos (decerto, por modéstia profissional), julga-se o salvador da pátria, numa assombrosa e dissimulada impostura; o outro, o "idiota útil" – aquele que uma vez sublimou o espírito com a leitura de Marx –, enturvado no seu ódio ao Estado e ao funcionalismo público, representa o poder dos burocratas e do grupo de interesse neoliberais. Sem mácula, o belo "idiota útil" assume que a eficiência nos custos da austeridade são os que transportam menores "custos de peso-morto" no mercado político (e que levaria - sem rebuço - ao óptimo de Pareto), pelo que a eficiência e equidade das medidas tomadas contra a canalha do funcionalismo (essa corja!) estariam explicadas, mesmo se a lacrimosa advertência do economista Cavaco Silva (o monstro) o acosse. O belo "idiota útil", na sua mecânica racional e estouvada utilidade métrica da austeridade, poderá destruir o Estado, anestesiar os indígenas, sangrar o país e o que mais lhe aprouver na sua monomania ideológica, mas nunca vergará a liberdade individual de participar na res publica e de assim sermos, com dignidade, homens livres - patiens quia aeternus".
Suddenly, last summer… a Inglaterra pegou fogo: centenas de lojas saqueadas, dezenas de edifícios a arder, vandalização de equipamentos públicos, confrontos com a polícia, mortos e feridos, enfim, um cenário de guerra pouco comum nestas paragens, numa espécie de remake pós-moderno da blitzkrieg hitleriana. A estupefação foi enorme e produziram-se milhares de comentários sobre um fenómeno aparentemente tão inusitado.
Para uns, tudo não teria passado de uma explosão niilista que juntou o profundo ressentimento social de grupos desapossados de bens e de ética a uma raiva incontida, manifestação acabada, afinal, de um exacerbado “individualismo possessivo” (na consagrada expressão do sociólogo canadiano Crawford Macpherson). Para outros, os acontecimentos ingleses seriam o reflexo, ainda que espontâneo e desorganizado, da revolta social contra o sistema neoliberal instalado no país desde há décadas. Houve também quem não visse nos atos praticados mais do que puro e simples banditismo, um caso de polícia a exigir mais prevenção e, sobretudo, repressão. E, o que é mais curioso, é que todas estas opiniões, por contraditórias que sejam, têm razão de ser, explicando uma parte substancial da realidade.
Numa rápida revista da imprensa portuguesa desse período é possível encontrar exemplos pertinentes e ilustrativos de cada uma das posições enunciadas. Assim, para Viriato Soromenho Marques, os violentos acontecimentos de Londres e de outras cidades inglesas são sintomáticas do estado de desagregação e anomia a que chegaram as nossas sociedades. Baseadas no consumismo desenfreado e no culto da posse como único princípio ético e moral, abandonaram-se as mais elementares noções cívicas de cidadania e, ainda mais, de solidariedade. A satisfação material imediata e a todo o custo, provocou o desaparecimento de qualquer preocupação com o bem comum e com a justiça social na governação colectiva. Para este autor, o que os jovens britânicos mostraram é que “A sua violência egoísta, a sua avidez por tecnologia de ponta, e o seu desrespeito pela propriedade e pela integridade física dos próprios vizinhos, tratados como se fossem alvos a abater num jogo de vídeo, só poderá ser compreendida se percebermos que eles são a caricatura da nossa sociedade consumista (…) que há muito cometeu o pecado mortal de pensar que seria possível fazer da felicidade material a essência e o objectivo da política.” (Visão, 18/8/11). Por isso, uma das principais conclusões a retirar de toda esta situação é que “A captura da política pela felicidade cumpriu-se através do eclipse do cidadão pela figura do consumidor.” Doravante são os desígnios deste último que comandam os destinos da sociedade, que condicionam as opções políticas – elas próprias progressivamente mercantilizadas e vendidas ao melhor preço – que ditam leis sem sentido de justiça mas com sentido de negócio.
Outros enfatizaram a dimensão social dos tumultos, chegando o jornal do PCP Avante! – exemplo particularmente significativo –a intitular “Pobreza incendeia Londres” (Avante!, 11/8/11) numa das primeiras notícias sobre os acontecimentos. Nesta perspetiva, criticava-se sobretudo os efeitos da crise económica e do desemprego galopante, bem como do aniquilamento das políticas de proteção social por parte do governo conservador, levando ao desespero camadas particularmente desfavorecidas da sociedade inglesa que, numa explosão de ira invulgar, teriam atuado com a violência e ódio a que se assistiu. Nesta espécie de jacquerie dos nossos dias, era fundamentalmente o sistema neoliberal dominante que estava a ser contestado, demonstrando de forma cabal o profundo mal-estar de largos setores da população inglesa face à despudorada concentração de cada vez mais riqueza e poder nas mãos de cada vez menos gente.
Uma terceira corrente de pensamento, ainda que de cariz mais controverso, remetia o sucedido para a categoria do mero hooliganismo. As manifestações de saque e vandalismo não passariam disso mesmo, isto é, de ações criminosas. Rejeitava-se mesmo qualquer hipótese de explicação sociológica para o sucedido, alijando-se culpas atribuíveis ao modelo de sociedade estabelecido. Nas palavras de José Manuel Fernandes, “Quando se começa a desculpar «sociologicamente» o crime, deixa-se de perceber o essencial: que numa sociedade civilizada e aberta praticar um crime é sempre praticar um crime, ponto final.” (Público, 12/8/11). Recuperava, aliás, as afirmações do primeiro-ministro inglês, David Cameron, segundo o qual “este não é um problema de pobreza, mas de cultura, uma cultura de violência e de falta de respeito pela autoridade”, retomando a conhecida litania conservadora do excesso de direitos e da falta de responsabilidade.
É certo que os acontecimentos de Inglaterra tiveram um pouco de tudo isto, o que, desde logo, comprova bem a complexidade do ocorrido. Mas o que talvez seja mais chocante no que se passou é a completa desfocagem dos objetivos e procedimentos dos revoltosos, o caráter espasmódico e inconsequente dos seus atos, a completa inconsistência política da revolta. Percebem-se as causas que estiveram na origem dos acontecimentos. Compreende-se o nível de insatisfação atingido. Até pode haver empatia pelas razões invocadas para o efeito. Mas dificilmente se pode aceitar a pilhagem de roupa desportiva e sapatilhas de marca (para impressionar namoradas ou desfilar em alguma festa? Para fazer jogging?), o roubo de ecrãs de plasma (para quê? Para ver as imagens televisivas dos motins em HD?), a vandalização de equipamentos públicos (isto é, para todos!), a destruição de lojas de bairro, o assassinato de vizinhos tão ou mais infortunados que os revoltosos, a insegurança generalizada nos bairros pobres (com efeito, as zonas ricas não foram minimamente afetadas). Não houve um ministério atingido, um membro do governo importunado, uma instituição financeira molestada. Não houve uma ideia, uma reivindicação, um propósito. Nada. Faltou esquerda.
Faltou esquerda na discussão dos problemas, na denúncia das injustiças, na contestação às políticas públicas seguidas, na consciencialização e mobilização das populações, na resistência ao modelo de sociedade imposto, na apresentação de alternativas, em suma, na capacidade de transformar simples motins, em ações revolucionárias. Faltou uma esquerda consequente, responsável e ativa, capaz de ultrapassar a deserção ideológica e perversidade política do New Labour de Tony Blair e Gordon Brown, cuja principal feito consistiu tão só (e com que consequências em toda a Europa!) em amalgamar a social-democracia e o neoliberalismo, como justamente sublinhou o sociólogo britânico Stuart Hall. Faltou uma esquerda que proponha novos caminhos, novas formas de vivência coletiva mais justas e igualitárias, um novo projeto de sociedade. Quando isso acontecer, os interesses e poderes instalados terão razão para se sentir ameaçados. Nessa altura deverão ter medo. Muito medo.
Hugo Fernandez