O Almocreve traz notícias... e não são Petas!
"Coelho – Ingénuo dos matos" [in Dicionário João Fernandes, 1878]
O raminho de adesivos, devotos da superstição liberal, que levita na obscura governação (!?) do sr. Passos Coelho, teve hoje, para lá da minúcias costumeiras, um dia de copiosa erudição doméstica. A paróquia, escoltando o comboio lusitano do default posto a correr pela santa Moodys, pasmou nas redobradas unções desses cavalheiros. O downgrade do rating da República anunciada repesou o discurso patriótico. O representório é farto e variado. Ninguém ficou de fora na caprichosa polémica sobre as agências de rating.
O indigenato, desde o conspícuo dr. Cantigas ao invulgar guarda-portão Durão Barroso e do ignorante zelador Zé Manel Fernandes (leia-se este anedotário económico) ao sábio vigário João Miranda, a fazer fé nos suspiros & pronunciamentos acasalados, soprou (prenhe de graça neoliberal) autorizadas explicações e demais "traficâncias dos áulicos". O sr. Passos Coelho confessa que levou com "um murro no estômago". Gasparzinho, orador das Finanças, assegura que a Moddys "ignora" os paliativos que se está a praticar. O nosso admirável raminho de banqueiros defende que se deve "romper com as agencias de rating". Álvaro, professo da tradição coimbrã, prepara, desde já, a venda da ilha Madeira aos chineses. O lavrador Portas espera um milagre bíblico: já telefonou a Bush. Frau Merkel, de resto clássico, discorda das manhas da Moddys. A dra Manuela Ferreira Leite, imperturbada no seu mausoléu partidário, ignora (agora) o sinal da Moddys de falta de confiança no Governo. E Sócrates, no segredo inviolável do exílio, dizem que sorri grávido como um filósofo. De facto, o país (e a Europa) virou uma coelheira, nestes dias.
Os amadores da coisa económica são, portanto, na opinião e autoridade intelectual, uma agremiação curiosa. E acordam sempre muito tarde, decerto por dever de ofício ideológico. O dr. Cavaco (por exemplo), num curioso diseur (Memorabilia Cavacus dicta), assegura "não haver a mínima justificação para que o rating de longo prazo de Portugal tenha sofrido tal corte" e, num decerto malfalante linguado, "congratula-se com a condenação da atitude da agência de notação financeira Moodys por parte da União Europeia". Que cacofonia. Que desatino. Ora que maçada! Lembra-nos sempre essa deliciosa paródia da primeira aula de Finanças Públicas do ano, tricotada pelo lente Cavaco Silva, quando anunciava (enternecido) a estatística dos chumbos do ano anterior. Mas não durou muito o rating cavaquista. Perante a recusa às aulas dos "clientes" assim escruciados, lá teve de caminhar o lente para terras de York. Admirável resposta! Acautelai-vos Ó Moddys.
E - pasme o leitor(a) pelo nosso testemunho - afinal em que ficamos? Continuamos nesta tresvairada (des)construção da União Europeia, sem lustre nem grandeza, vacilantes nos passos a dar, sem comandante nem barco, sem gente de respeito? Acaso o sr. Trichet (ou o servo Constâncio), distinto empregado do BCE, tem utilidade, visão ou rasgo para o lugar que (misteriosamente) ocupa? A quem obedecerá, na sua prece íntima ou linha de orientação estratégica, o inefável Presidente da Comissão Europeia? Como salvar o Euro e ao mesmo tempo, nos salvar do "estoiro" da economia norte-americana? Como jogar o jogo com as empresas de notações de risco, com exigência de transparência responsável e sem qualquer forma de manipulação? Como conseguir fugir à devassa, pagar os juros a vencer e os deficits futuros, que são o nosso fado? Como nos livrar desta soldadesta neoliberal, desta perversão maníaca dos mercados sem regulação, desta religião ou purga neoliberal? Quando seremos um país decente, economicamente produtivo e equilibradamente justo, civilizado no trabalho e na vida, fraterno e transparente nos rendimentos e na coisa pública? Haverá um amanhã? Afinal "que é o meu nada, comparado ao horror que vos espera" [Rimbaud]
“Eis o resultado da situação a que chegamos: «lixo»”. A afirmação é do professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Mário Vieira de Carvalho, em artigo publicado no Público (18/4/2011) com o sugestivo título “O Estado-mercadoria e o fim da democracia”, onde denuncia a dominação absoluta dos especuladores internacionais sobre o poder democrático, na pretensão de substituir a política pela economia, escondendo, de facto, uma agenda política que ultrapassa em muito a racionalidade económico-financeira proclamada. “São milhões de pessoas, Estados inteiros oferecidos em holocausto à gula do capitalismo de casino” diz o professor, para quem a subversão da democracia e do seu caráter profundamente plebiscitário é assim explicada: “Nunca a ideologia de dominação foi tão sofisticada. Já não lhe basta «assegurar» o sentido do voto. Pretende também torná-lo obsoleto.” Trata-se, portanto, de um grave risco para o sistema democrático que está na base da nossa vida colectiva.
“Lixo” é a designação com que as agências de rating mimoseiam os países que falham em cumprir as exigências da sua (e dos organismos institucionais que lhes dão a devida cobertura) gula desmedida. Entidades predadoras das riquezas nacionais e de toda e qualquer ideia de coesão social, para quem a ética rima com ambição desmedida custe a quem custar, estes especuladores financeiros emparceiram com governos voluntariamente reféns desta descarada chantagem. Só assim se pode compreender, por exemplo, a conversão da dívida de bancos privados em dívida pública (veja-se, entre nós, o caso do escandaloso resgate financeiro do BPN) ou da viabilização de interesses megalómanos nas tristemente célebres Parcerias Público-Privadas. Trata-se, portanto, de um grave risco para o contrato social que esteve na origem das sociedades modernas e de uma ameaça direta aos direitos mais básicos da população.
O negócio da notação financeira é extremamente lucrativo. As receitas das duas maiores empresas do ramo, as norte-americanas Moody’s Corporation e a Standard & Poor’s (S&P) – curiosa designação: mediania e pobreza! – amealharam mais de 8 mil milhões de dólares (5570 milhões de euros) em receitas no ano de 2009 – um ano após o despoletar da crise mundial do subprime – tendo tido um incremento de lucros de cerca de 30% no primeiro caso e 20% no segundo, relativamente ao ano transato (novo aumento de lucros respectivamente de 10% e 13% ocorreu em 2010), aumentos alimentados pela dívida crescente dos países rotulados. Os governos destes países, apostados em resgatar a qualquer preço o setor privado e conseguir a liquidez necessária, emitiram montantes cada vez mais elevados de dívida pública e caíram no âmbito de atuação da notação financeira. Estas agências nada produziram, mas certamente muito destruíram, amealhando enormes quantidades de riqueza e movimentando verbas astronómicas. Com efeito, o retorno financeiro dos prestamistas – erradamente designados por investidores – que recorrem aos cálculos destas empresas nada tem a ver com qualquer atividade produtiva, mas com a compra, a juros proibitivos e mercê de todo o tipo de benefícios, das dívidas soberanas dos diversos países em dificuldades. Simples agiotagem, portanto.
Embora estas empresas tenham sido alvo de inúmeros processos criminais ligados à emissão de notações de risco enganadoras ou à classificação em alta de ativos tóxicos (com o conveniente compadrio das instituições bancárias nacionais e internacionais) e mesmo por violação de leis estaduais norte-americanas, mantêm uma valorização das suas ações na Bolsa nova-iorquina inversamente proporcional à enorme tragédia social que têm vindo a provocar. Foi assim, de resto, que se fez a propaganda desenfreada de fundos financeiros de risco (hedge funds) baseados nas hipotecas subprime que estiveram na origem da bolha imobiliária dos inícios do século XXI, com as dramáticas consequências conhecidas. Em 2006, nas vésperas da crise ser detonada (agosto de 2007), 80% dos títulos de subprime receberam a nota máxima (AAA) equivalente ao rating das obrigações do Tesouro dos EUA (nessa altura, 40% das receitas anuais da Moody’s, S&P e Fitch já provinham da notação financeira dos produtos subprime). Quando faliram, os gigantes americanos do mercado de hipotecas Fannie Mae e Freddie Mac, a maior companhia de energia estadounidense Enron ou o conglomerado segurador AIG, apresentavam igualmente os ratings mais elevados. O Banco de Investimentos Lehman Brothers, o 4º maior dos EUA, quando em setembro de 2008 já estava com dificuldades em saldar as suas dívidas, foi classificado pela Fitch e a S&P com AA (Público, 26/6/2011). Agindo sem rigor, nem transparência, divulgando informação fraudulenta, depreciando concorrentes e favorecendo com classificações máximas aqueles que lhes solicitavam os respectivos serviços de consultadoria, fez-se, isso sim, a promoção da irresponsabilidade, da ganância e do aventureirismo, atitudes que dificilmente podem ser compagináveis com uma ética da responsabilidade tantas vezes invocada pelos dirigentes governamentais um pouco por todo o mundo. Com efeito, haverá algo de mais totalmente leviano do que a prossecução de políticas públicas conducentes às portas da bancarrota, como foi o caso de Portugal? Tal estado de coisas foi, aliás, feito com a complacência e cumplicidade despudorada das instâncias financeiras internacionais como o Banco Mundial ou, sobretudo, o FMI, que viu os seus próprios proventos aumentar graças aos empréstimos concedidos aos países europeus em crise – Irlanda, Grécia e agora Portugal –, tendo revisto em alta, em mais de 60%, os resultados operacionais para o ano de 2011 em relação a 2010. Trata-se, portanto, de um retorno direto aos pressupostos daquilo que foi designado por “capitalismo selvagem” que há 200 anos a esta parte fazia o esplendor da Inglaterra vitoriana, mas no presente a uma escala incomparavelmente alargada e proveitosa.
O que sobra de todos estes desvarios? A certeza de que, à medida que a crise se agrava, não só aqueles que a provocaram não são responsabilizados, como se converteram nos seus principais beneficiários.
Hugo Fernandez