Nas nossas sociedades pululam dirigentes políticos que fazem da dissimulação e da hipocrisia um modo de vida. Alguns prometem, com todo o descaramento, mundos e fundos, distribuem benesses (desde os famosos jobs for the boys até aos simples electrodomésticos), estão envolvidos em todo o género de falcatruas, protegem ou incentivam a corrupção e demonstram uma despudorada ganância pelo poder: são os populistas. Outros são mais sofisticados – e também mais perigosos para a democracia – tentando convencer as populações com actos de aparente generosidade e desprendimento, de falso altruísmo e hipócrita solidariedade. Nunca porém tocam no que é essencial. Longe de quererem beliscar – quanto mais reformar – o actual sistema societário, que é a razão de ser do seu domínio, procuram torná-lo mais simpático e tolerável. Pertencem a outra estirpe: são os demagogos.
Ambos usam a manipulação como estratégia política, procurando dissimular a indiferença ou pouca consideração que têm pelos reais problemas e dificuldades das populações que governam ou pelas consequências da sua acção em prol sobretudo da manutenção, a todo o custo, do poder pessoal ou de grupo adquirido. Se os primeiros apresentam um tipo de actuação bastante óbvia, convencendo pelo primarismo e grosseria das intenções e métodos seguidos, os segundos, parecendo aquilo que não são, mostram-se mais subtis e rebuscados, insinuando e confundindo para melhor persuadir.
Uma das características do demagogo é apresentar-se aos cidadãos como alguém que lhes está próximo; a bem dizer, que é “um deles”. Essa suposta proximidade permite mascarar situações de privilégio e escamotear a distância que vai entre os poderosos e os desfavorecidos, entre os detentores e os desapossados. Permite sobretudo iludir a aquisição de um estatuto social construído precisamente na ânsia de fugir a situações iniciais de maior debilidade ou desprestígio pessoal. O paradigma do self made man alimenta todas as ilusões e serve simultaneamente de guião para todas as novelas (as ficcionadas e as reais). A reiteração propagandística do mote “alguém que vem do povo” completa um quadro idílico de comunhão de preocupações e interesses.
Outra das recorrências atitudinais do demagogo prende-se com o discurso “anti-política”. O efeito anestesiante da primeira asserção referida facilita uma encenação de distanciamento do dirigente político face um mundo que supostamente não é o seu e do qual ele se tenta demarcar. É o conhecido mito da “independência face aos políticos e à política”, destinado a manter imaculado o seu prestígio e incólume a sua capacidade de actuação. A referência constante “aos políticos” – os outros, está bem de ver – oculta um efectivo protagonismo de poder e de domínio social que assim se dilui num suposto desígnio nacional, assente numa ampla harmonia colectiva.
Uma imagem de irrepreensível honradez e de impolutas intenções completa o quadro. O demagogo é sempre vítima de incompreensões injustificadas, de calúnias, insinuações e mentiras, de “campanhas negras” que deformam uma realidade acima de qualquer suspeita. As evidências em contrário são prontamente desvalorizadas e escamoteadas ou, à falta de melhor, convenientemente distorcidas. Quando não há outra alternativa, ensaia-se a fuga para a frente. Tomam-se então iniciativas que, visando causar o máximo de impacto na opinião pública, não passam de autênticas mistificações. Em tempos de crise económica e de feroz austeridade, é o caso da abdicação de remunerações auferidas pelos dirigentes políticos enquanto detentores de cargos públicos. É o corolário da demagogia.
A cobro de um aparente desprendimento pelos benefícios da governação e de dedicação desinteressada à causa pública, este acto revela, isso sim, duas atitudes igualmente condenáveis: sobranceria e desrespeito. Sobranceria, porque se alardeiam fortunas pessoais resultantes de um conjunto, muitas vezes alargado, de outros proventos, que permitem dispensar a remuneração referida. Longe de se pôr em causa a justeza e moralidade da acumulação, nestas circunstâncias, de todos esses rendimentos, essa situação é agravada pelo facto de invariavelmente se prescindir da sua parte mais reduzida. Para além de uma dimensão que podemos considerar pessoal, um acto hipócrita desta natureza traduz, acima de tudo, um desrespeito pela função exercida e uma desvalorização do significado da representação política. Em democracia, os cargos políticos devem ser pagos e justamente pagos. Não sendo isso o que dignifica a função e atesta a sua relevância societária, é seguramente isso que visa obstar à pressão de interesses e a tentações corruptoras.
Caso contrário, regressaremos ao século XIX e aos chamados notáveis, cuja condição económica era suficientemente desafogada para que pudessem ocupar cargos políticos sem qualquer remuneração. Convém, no entanto, não esquecer que era precisamente esta circunstância que, por outro lado, não permitia à generalidade da população aceder aos lugares de representação política, e que fazia com que o próprio sufrágio estivesse condicionado aos limites censitários, o que inviabilizava o exercício da cidadania pela esmagadora maioria da população. Felizmente o sistema democrático aperfeiçoou-se e os tempos são outros.
A função política não é um emprego de cuja remuneração se possa prescindir como se se tratasse de uma licença sem vencimento. O cargo ocupado não é da pessoa, mas simplesmente a sua ocupação transitória. Neste caso é o ofício que faz o oficial e não o contrário. Por isso há pressupostos, dignidades e regras a cumprir. Não é legítimo abdicar de um provento que é justo e devido. Claro que a maneira como esses rendimentos são posteriormente empregues é da exclusiva responsabilidade de cada um. Não pode é haver deputados ou presidentes à borla, por respeito pela dignidade da função que exercem em representação dos cidadãos que os elegeram. É em nome da justiça governativa que a democracia se paga e não de qualquer critério utilitarista.
Agora, o que também seria da mais elementar decência cívica é que, durante o exercício de funções políticas, o seu detentor abdicasse de todas as outras remunerações auferidas. Nesta situação, a acumulação torna-se verdadeiramente obscena. Esse sim era um genuíno sinal de abnegação e entrega ao serviço público, um sinal de transparência e verdade na acção política. Mas aí já estaríamos muito longe do reino da demagogia. É que a democracia não pode ser um simples cálculo de deve e haver.
Hugo Fernandez