A insuportável ladainha que nos últimos tempos tem sido inculcada nas mentes dos portugueses baseia-se em duas falácias igualmente execráveis: por um lado, a de que vivemos acima das nossas possibilidades e, por outro, a de que todos temos responsabilidade no actual estado de coisas. Esta construção ideológica, misto de culpabilização colectiva e de desresponsabilização individual, serve para sustentar a crença de que todos temos de contribuir para a resolução da presente crise através do sacrifício partilhado das nossas existências. Serve até para definir o padrão de comportamento e de consumo socialmente aceitável, censurando sem o mínimo pudor desejos, apetências ou necessidades dos outros
normalmente dos mais pobres.
Esquece-se convenientemente que não somos nós que auferimos ordenados chorudos, que não somos nós que recebemos todo o tipo de prebendas e usufruímos dos mais escandalosos privilégios, que não somos nós que multiplicamos pensões e ordenados, que não somos nós que saltitamos de conselho de administração em conselho de administração, à pala de fidelidades partidárias ou de compromissos venais (e é bom lembrá-lo! da mansa complacência da maioria dos cidadãos), que não somos nós que especulamos na Bolsa, que não somos nós que nos subtraímos, a uma escala inimaginável, ao pagamento das obrigações fiscais, que não somos nós que promovemos a fuga de capitais em offshores por esse mundo fora
mas apenas alguns, poucos, de nós.
Delapidado o património nacional a este ponto, a crise é fácil de entender. Não fomos nós que a provocamos. Mas seremos certamente nós a pagá-la, na íntegra e com juros. Com juros, para continuar a alimentar os numerosos boys das clientelas políticas e dos nababos da máquina neoliberal, que passam pela crise sem serem verdadeiramente afectados pese embora declarações piedosas e compungidas em contrário e que, ao invés, ambicionam (se nós os deixarmos!) reforçar a sua riqueza e o seu poder. A comprová-lo está o aumento imparável das desigualdades sociais no nosso país recordista na União Europeia que tanto gostamos de invocar para outros índices mais abonatórios em que os mais ricos são cada vez mais ricos e os mais pobres cada vez mais pobres, numa escalada de nítido matiz sul-americano. Basta atentarmos nos números fornecidos por Boaventura de Sousa Santos (Visão, 21/10/2010), segundo os quais, já em 2008, o pequeno número de cidadãos ricos (4.051 agregados fiscais) usufruía de um rendimento semelhante ao de um vastíssimo número de cidadãos pobres (634.836 agregados fiscais).
A culpabilização colectiva engendrada pela presente crise, indutora da conformação a todo o tipo de ditames e da aceitação de todo o género de renúncias, aparenta apresentar, para além do mais, uma singular inversão do próprio sentido individualista individualismo possessivo, na consagrada expressão do politólogo canadiano Crawford Macpherson que caracteriza o sistema capitalista. Imersos na massa, dir-se-ia que se subalternizam os sujeitos e se desprezam as individualidades. Nada, porém, é mais falso. A colectivização dos encargos da crise apenas serve para camuflar as efectivas responsabilidades individuais (para além do gozo bem exclusivo dos respectivos benefícios) daqueles de entre nós que presidiram aos destinos do país seja ao nível político, seja ao nível económico que definiram as políticas, que assumiram os compromissos e que tomaram as opções desastrosas pelas quais todos nós estamos agora a pagar. Se as responsabilidades são assacadas a essa entidade misteriosa, vagamente irracional e, sobretudo, anónima, denominada mercado, os agentes concretos que o controlam e manipulam, passam despercebidos e esfumam-se na espuma dos dias. Mas ninguém tenha dúvidas que existem e que devem ser responsabilizados pelo que fizeram
pelo que fizeram a todos nós.
A austeridade exigida para reduzir o défice orçamental e a dívida pública, situação recorrente de há muitos anos a esta parte, conta com uma terceira componente de que ninguém fala: a que só por esta via se assegura a manutenção da desregulação dos mercados de capitais e dos lucros fabulosos da especulação financeira, de que beneficiam outros tantos capitalistas que, no sector produtivo, ainda sonham com os índices máximos de exploração dos trabalhadores, próprios dos primórdios da revolução industrial, num período justamente apelidado de capitalismo selvagem. Recordemos que Boaventura de Sousa Santos (Visão, 21/10/2010) calcula em 38,5%, o aumento do número de trabalhadores por conta de outrem abrangidos pelo salário mínimo (450 euros), entre 2006 e 2009. Por isso, esta não poderá deixar de ser o que já se designa por austeridade assimétrica.
Fica, pois, a interrogação certeira de José Gil (Visão, 28/10/2010): Estamos então condenados a viver pobremente, para oferecer credibilidade aos mercados capitalistas para que continuem a emprestar-nos para que possamos continuar a viver pobremente para
? É possível que nós continuemos a aguentar isto?
Hugo Fernandez