Sócrates convive mal com a democracia. Pelo menos com aquela que lhe retirou a maioria absoluta com que governou o país durante quatro anos e meio. E se a legitimidade política, em democracia, advém dos votos que expressam a vontade dos cidadãos (isto para além de qualquer consideração relativa à razão ou à justeza das escolhas feitas), é óbvio que o PS foi o partido mais votado, nas últimas eleições legislativas. No entanto, também parece claro que teve apenas uma maioria relativa, isto é, que a soma dos votos dos outros partidos concorrentes ultrapassou o número de votantes no partido do Governo. Isto significa que a maioria absoluta dos eleitores portugueses votou contra o PS. Ora, para qualquer democrata, isto teria que ter consequências a nível da governação. Para Sócrates não.
A ridícula farsa de convidar todos os outros partidos para um eventual Governo de coligação, não passou disso mesmo. Quando as intenções são sérias e não visam apenas uma estratégia de vitimização que, como se tem visto, é central na acção governativa, fazem-se escolhas e assumem-se compromissos. Nada disso foi feito e o isolamento do PS era inevitável. Só que o estilo calimero não condiz com a arrogância e vaidade socratianas. Soa a falso e é patético. Sobretudo não é credível.
E a confiança é algo que o actual Governo precisa como de pão para a boca. Se com maioria absoluta, uma propaganda avassaladora servida diligentemente por uma máquina de perseguição dos opositores e pela tentativa de controlo dos meios de comunicação social permitia mascarar os fracassos governativos e a progressiva degradação da realidade portuguesa, agora Sócrates tem mesmo que prestar contas. E prestar contas onde elas devem ser prestadas; no Parlamento. É aí, na sede da democracia, que se faz a fiscalização dos governos e se debatem propostas alternativas. É aí o local, por excelência, do confronto político. É aí que se faz sentir a verdadeira dimensão dos resultados eleitorais. Aqueles que, no fundo, Sócrates se recusa a aceitar, porque sendo o partido mais votado, perdeu aquilo que mais queria a maioria absoluta.
A histeria com que foram encaradas as recentes derrotas no Parlamento, com a legislação aprovada pelas oposições contra a vontade do PS, provou essa profunda mágoa e a verdadeira impossibilidade de Sócrates mudar de rumo. O diálogo prometido rapidamente deu lugar ao desespero da influência política perdida e à falácia vitimizadora, enunciada pelo Ministro dos Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão, ao clamar Não podem pedir ao Governo do PS que governe na base dos programas dos partidos que perderam as eleições. Aquilo que o próprio designou por ultimato, denuncia, afinal, uma evidência: a de que os partidos que perderam as eleições, de facto, foram os seus vencedores. No seu conjunto, remeteram o PS para uma maioria relativa e para a absoluta necessidade de entendimentos políticos para conduzir a governação. Escusa o Primeiro-Ministro de invocar a irresponsabilidade dos parlamentares, ou de protestar que Não se pode governar o país a partir da Assembleia da República. A situação de governo minoritário exige, pelo contrário, a negociação permanente com as forças políticas com assento parlamentar e a busca de acordos que viabilizem as propostas apresentadas pelo partido do Governo. Se é certo que é o Governo quem governa, não é menos certo que, nas actuais circunstâncias, o Parlamento tem seguramente uma importante palavra a dizer na governação do país.
Ora este condicionamento da acção governativa, para além de ser expressão do livre jogo democrático e constituir a normalidade do funcionamento da democracia ao contrário das situações de verdadeira excepção que representam as maiorias absolutas de um só partido encerra duas virtudes de enorme relevância. Por um lado, acaba o exercício autoritário do quero, posso e mando, de má memória, com que Sócrates nos brindava constantemente. Passou a imperar a negociação política e a discussão das várias propostas existentes para resolver os gravíssimos problemas que a sociedade portuguesa enfrenta. Por outro lado, o presente estado de coisas tem a virtude de obrigar à clarificação política, quer na assunção inequívoca dos acordos parlamentares efectuados, quer na clareza dos posicionamentos adoptados em termos das opções político-ideológicas existentes.
Resta saber se o PS-Sócrates consegue suportar esta situação. Como já se percebeu, Sócrates não admite ser contestado. O problema político de fundo que se começa a colocar tem a ver com o próprio estatuto do PS na democracia portuguesa. É que se o PS está dependente de indivíduos como Sócrates para adquirir importância social e poder político, então o problema está, claramente, no partido e no que ele representa. Se, pelo contrário, foi o carácter arrivista e autoritário dessa personagem que levou o PS a uma deriva neo-liberal e a renegar todos os valores e princípios de esquerda que são a sua matriz constitutiva, então a resolução do problema está, decididamente, no pós-Sócrates. De qualquer forma, como dizia Vasco Pulido Valente na sua habitual crónica no jornal O Público (29/11/09), no estado a que as coisas chegaram, nada se resolverá com Sócrates. A realidade é esta.
Ao contrário do que querem fazer crer os dirigentes socialistas, não há nada de dramático na presente conjuntura. Pelo contrário e parafraseando um dito que ficou célebre, é a democracia, estúpido!