Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Domingo, 1 de Novembro de 2009
MODERNIDADES

Em entrevista à revista Visão (15/10/09), José Sócrates não tem dúvidas em afirmar que a vitória eleitoral do PS nas últimas eleições legislativas se deveu ao “apoio de todo o Portugal inovador, moderno, com aspiração.”, apoiante do que denomina “um processo reformista de alta intensidade”. Muitos comentadores reiteraram esta posição, como foi o caso do jornalista Daniel Deusdado, quando diz “Sócrates sabe que a modernização não se faz com apoios à esquerda.” (Diário Económico, 14/10/09). De uma penada, parecem assim impor-se duas evidências. Por um lado, o carácter conservador (para não dizer reaccionário) da esquerda. Por outro, as virtudes insofismáveis da “modernidade” proclamada. É sabido que, as evidências – tantas vezes convertidas em dogmas – são inimigas do questionamento e da problematização. Por isso, rejeitando quer umas, quer outros, vale a pena reflectir um pouco sobre o assunto.


Se por “modernidade” se entende o mero impulso de mudança, em qualquer sentido que esta se manifeste, então estamos perante uma atitude irresponsável, ou de manifesto oportunismo político. Com efeito, só a falta de escrúpulos e um apego doentio ao poder, podem sustentar uma constante transformação do existente, independentemente de uma avaliação da sua utilidade social. Até porque, de há muito, que ninguém tem ilusões sobre a “marcha inexorável” e linear de um progresso civilizacional que, pelo contrário, teima em escapar-nos, por entre avanços e recuos ou os corsi e ricorsi, espiralados de que nos falava Giambattista Vico. Neste sentido distorcido, o antecedente é sempre visto como mais imperfeito do que o procedente, entendendo-se o progresso como o resultado de uma simples sucessão temporal.


Raras vezes este entendimento da “modernidade” aparece de forma explicitada. Falta-lhe a intenção. Com efeito, a ideia de modernidade – ou, no sentido similar que lhe é atribuído, de progresso – vai para além de um desconcertante e aleatório fluxo das coisas, sendo necessário atribuir-lhe um sentido, uma direcção, a prossecução de objectivos. E se é certo que esta intenção povoou todos os determinismos e finalismos de que há memória, assumindo com frequência dimensões escatológicas verdadeiramente delirantes, também não deixa de ser certo que este é um ingrediente fundamental para a inteligibilidade da evolução das sociedades. Na ausência da referida intenção, ficamos face a um incompreensível e inconsequente fluir da História.


Desde há trezentos anos a esta parte que o progresso é entendido como a possibilidade da perfectibilidade das sociedades, a realizar no mundo terreno. Este entendimento, implicando uma permanente atitude crítica em relação à actividade humana, baseou toda a sua acção na avaliação, tão rigorosa quanto possível, dos sinais de progresso, de decadência ou mesmo de retrocesso, existentes nas várias circunstâncias consideradas. O encarar a possibilidade de aperfeiçoamento e de melhoria das condições de vida das populações, implicava um empenhamento e uma acção de transformação social na imanência do próprio processo histórico, rejeitando as determinações fatalistas da providência divina ou as inevitabilidades transcendentais de qualquer destino anunciado.


O pensamento político moderno entendia assim o progresso – no sentido da modernização das sociedades – em termos da gradual satisfação das necessidades das pessoas e de uma progressiva igualdade de direitos, com a concomitante diminuição das desigualdades e injustiças entre os Homens. Foi este paradigma igualitário, expresso no princípio verdadeiramente estruturante de que “a lei é igual para todos”, que presidiu às revoluções liberais ocorridas a partir dos finais do séc. XVIII, invertendo a lógica aristocrática da harmonia da sociedade assente no princípio do privilégio, da distinção social e da hierarquização corporativa. À discriminação do nascimento opunha-se, assim, a consideração igualitária da cidadania, expressa na igualdade de direitos e deveres cívicos. Se quisermos, tratou-se de um salto civilizacional decisivo e introduziu uma modernidade de que continuamos a ser herdeiros.


A sociedade moderna do século XIX passou a postular a igualdade de direitos, a mobilidade social e a meritocracia individual do desempenho. Ainda quando a defesa da propriedade privada e a liberdade económica provocavam evidentes desigualdades sociais, a via da prosperidade estava, pelo menos de maneira formal, aberta a todos e não estava dependente do que se designava na época anterior por “qualidade de nascimento”. Só que este crescimento das desigualdades sociais, que a acumulação da riqueza por parte de alguns em detrimento de quase todos revelava, acabaria por provocar uma tensão crescente. O desfasamento entre as realidades e as intenções, ficou exemplarmente expressa no conhecido dito de Anatole France, segundo o qual “A Lei, na sua igualdade majestática, dá a todos os homens o mesmo direito de jantar no Ritz e de dormir sob uma ponte.”


Por isso houve necessidade de se introduzir o elemento democrático na ordem liberal. Este pressupunha não só a ampliação da participação dos cidadãos e uma maior possibilidade de influenciar a governação das sociedades – através dos mecanismos da representação política e do sufrágio universal – como uma capacidade acrescida de luta e reivindicação por melhores direitos, com o aparecimento do movimento operário, dos sindicatos e das regulamentações laborais. Á primeira geração de direitos – consagração dos direitos civis – acresciam as preocupações políticas, económicas e sociais, que iriam atravessar o séc. XX.


 Ao longo de todo este processo, o que parecia cada vez mais claro era que o cerne da divisão político-ideológica entre esquerda e direita assentava na dicotomia entre uma “igualdade de direitos” – formalmente consagrada – e uma “igualdade de oportunidades” – efectivamente existente. Enquanto a esquerda busca uma igualização de condições e valoriza o combate às desigualdades e discriminações que a realidade todos os dias nos trata de mostrar, a direita remete-nos para a consagração legal da igualdade de direitos (quando não faz abertamente, nas suas correntes mais extremistas, a apologia da desigualdade segundo os postulados perversos do “darwinismo social”). Para a direita, toda a vida em sociedade se baseia afinal num mito meritocrático, em que o lugar que cada um ocupa na sociedade advém do merecimento ou desmerecimento que lhe é atribuído. Este individualismo obsessivo (levando ao extremo o “individualismo possessivo” de que nos falava o politólogo canadiano C. B. Macpherson, precisamente a propósito das origens do pensamento liberal) esquece convenientemente a avaliação das condições de partida e, por isso, a consideração de qualquer ideia de igualdade de oportunidades.


A legitimação das desigualdades existentes passa, nesta perspectiva, pela total inversão do princípio da justiça social e pela apologia “da lei do mais forte”, claramente expressa no que alguns já apelidaram de “teologia do mercado”. A direita procura assim manter o status quo, que garante aos seus agentes a supremacia social e o poder económico, ainda que sempre em nome da igualdade de direitos. Por isso o seu ethos é profundamente conservador. Pelo contrário, a esquerda procura a melhoria das condições existentes, colocando o paradigma igualitário, que esteve na base da nossa modernidade, numa dimensão programática e pragmática de luta política. Quer ir mais além, na busca de uma sociedade mais justa e fraterna. Busca, sobretudo, a correcção equitativa das “regras do jogo”.


As últimas décadas do séc. XX trouxeram-nos desenvolvimentos – progressos? – surpreendentes. Aqueles mesmos que defendiam a manutenção da ordem das coisas, arvoraram-se em arautos de uma “modernidade” imparável e incontestável. Com o contributo, militante ou involuntário, de correntes de pensamento sugestivamente denominadas pós-modernas e o seu afã em denunciar o “fim das grandes narrativas” explicativas do devir histórico – como se essa pretensão não constituísse, também ela, uma dessas narrativas – assistiu-se ao surgimento de uma nova matriz de organização da sociedade; o neo-liberalismo. Esta tendência não se limitou a defender o individualismo mais agressivo – chegando mesmo a proclamar a utilidade da dissolução da sociedade, pelo menos no entendimento comunitário que estamos habituados a atribuir-lhe – como agravou sobremaneira as desigualdades existentes e reafirmou os princípios discriminatórios absolutos do “the winer takes it all”. Pretendeu mesmo representar um salto em frente da civilização humana e encontrar uma espécie de confirmação teórica no que se entendeu constituir a última etapa da sua evolução. Postulou-se o “fim da História”.


Só que a História dificilmente acabará por artes de feitiço. Perante a sua imperturbável continuação e, sobretudo, perante os desequilíbrios crescentes das inovações introduzidas, causadoras de novas injustiças e potenciadoras de novos conflitos, a corrente neo-liberal mostrou, afinal – contra a “modernidade” que vinha proclamando – quão presa estava a atavismos e a providencialismos arcaicos que eram, sobretudo, pré-modernos. Voltaram as inevitabilidades fatalistas e as necessidades escatológicas, próprias das sociedades antigas, que ficaram exemplarmente expressas no famoso slogan TINA (“there is no alternative”) do consulado de Margaret Thatcher.


Ora, como se sabe, a humanidade encontra sempre alternativas para a resolução dos seus problemas. Foi a constatação desta verdade elementar, que obrigou a uma humanização do poder neo-liberal que, na radicalidade dos seus princípios, se arriscava a provocar uma autêntica implosão social. Adveio então aquilo que se designou por “terceira via”. E aqui, mais uma vez, encontramos o confronto entre esquerda e direita, em toda a sua plenitude. A “terceira via” pretendeu ser uma resposta de esquerda para uma ordenação social crescentemente desigualitária e injusta. Só que, em vez de romper com esse estado de coisas, esta corrente doutrinal não só pactuou com a ordem existente como procurou o subterfúgio de uma repetida proclamação da “modernidade” que servisse de panaceia aos desmandos efectuados. Portanto, a coberto de um apregoado progresso, prosseguiu-se uma política profundamente retrógrada, claramente de direita.


Não só as desigualdades sociais se extremaram e a pobreza atingiu níveis nunca antes imaginados, como assumiram estatuto de verdades reveladas a necessidade inexorável da sobre-exploração, da precariedade, da insegurança, do desemprego e da mais completa sujeição de todos aos ditames dos interesses particulares e da ganância de alguns. Mais do que isso, confundiram-se direitos com privilégios, procurando, desta forma, justificar a perda daqueles e descaracterizar um património civilizacional, que tinha sido apanágio da esquerda e da sua luta pela igualdade. Tudo isto em nome da “modernidade”. Aquela mesma de que nos fala José Sócrates.


Parece assim subjazer, num ricorsi inesperado, o entendimento linear e circunstancial de “modernidade” que referíamos no início, assistindo-se a um verdadeiro fetichismo da mudança, isto é, a mudança pela mudança. Só que o caso agora é bem mais enganador, porque há uma clara intenção mistificadora em todo este processo. É que, contrariamente ao que dizia uma das personagens do Leopardo de Tomasi di Lampedusa, é preciso que tudo mude, não para tudo ficar na mesma, mas para que tudo retroceda. Tem sido precisamente este o papel dos governos PS-Sócrates. Mesmo antes do advento da crise internacional, não só as desigualdades sociais colocaram o nosso país no topo da escala europeia, como os níveis de pobreza, precariedade e desemprego se revelaram os mais elevados da nossa História recente. Tudo isto torna ainda mais chocante a afirmação do primeiro-ministro, quando fala de um Portugal “inovador, moderno, com aspiração.” Especialmente quando a própria Direcção-Geral do Orçamento admitiu, por exemplo, que o pacote de medidas anticrise do Governo de maioria absoluta do PS se quedou pelos 40% de execução ou que o investimento público foi muito inferior ao prometido. Esta displicência é reveladora do profundo desprezo com que o ideal da justiça social e da igualdade é tratado e como os recursos existentes são sempre canalizados para outros fins. Como disse um dia Camilo Castelo Branco, “O tempo chega sempre; mas há casos em que não chega a tempo.”


Talvez esta seja a “modernidade” dos mil milhões de esfomeados no mundo, barreira vergonhosa que o ano de 2009 tratou de ultrapassar. Mas certamente não é esta a concepção de modernidade da esquerda.


Hugo Fernandez


 



publicado por albardeiro às 21:36
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Fevereiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

12
13
14
15
16
17

18
19
21
22
23
24

25
26
27
28
29


posts recentes

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

ROLO COMPRESSOR

Reflexão sobre o artigo d...

AS PERGUNTAS

Valorizar os servidores d...

MÍNIMOS

Como será a educação daqu...

EXCESSIVO

DEMOCRACIA

arquivos

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub