E o povo falou! No escrutínio para o Parlamento Europeu de 7 de Junho quebraram-se dois mitos fundamentais. Em primeiro lugar o da invencibilidade de Sócrates e o da eternidade do seu poder. Com efeito, o PS sofreu uma das suas mais humilhantes derrotas eleitorais. É fácil descortinar as razões para tal desfecho. As pessoas estavam fartas do quero, posso e mando de um poder absoluto, assente na autosuficiência pacóvia e numa espécie de providencialismo sebastiânico de polichinelo, encarnado na insuportável arrogância e obsessão de pessoas medíocres, travestidos de líderes políticos e de homens de Estado respeitáveis. Nas premonitórias palavras de Manuel Alegre, Disse várias vezes para se ouvir a rua. Agora a rua foi às urnas! (i, 9/6/09).
Com efeito, as pessoas estavam fartas do profundo desprezo com que eram tratadas, das alterações constantes e abruptas das suas situações profissionais, do agravamento inexorável das suas condições de vida, da discricionaridade do mando e do autismo do poder, da censura e do medo. Nada disto poderá alguma vez fazer parte de um regime democrático. Até uma das personalidades socialistas mais respeitadas, Medeiros Ferreira, faz o seguinte diagnóstico: A filosofia da governação tem de se reger pelo serviço ao cidadão e não por um registo impositivo e imperioso que já dura há demasiado tempo. Basta do estilo temos razão e não se discute. (Visão, 11/6/09).
A tão propalada esquerda moderna, nada tem de uma nem de outra. Apologista dos mais cegos princípios do neoliberalismo, Sócrates chegou ao desplante de confundir direitos com privilégios, lançando na mais completa precarização da existência centenas de milhares de pessoas, transformadas numa espécie de novos escravos da era global. A suposta modernidade desta ofensiva, queda-se afinal pelas velhas soluções oitocentistas do capitalismo selvagem, próprias dos primórdios da Revolução Industrial. Sócrates conseguiu, aliás, duas proezas notáveis: Portugal é o país com os maiores índices de desigualdade social da União Europeia e os números do desemprego atingiram níveis nunca vistos no nosso país. Em consequência das políticas empreendidas, mais de um quarto dos portugueses vive actualmente na pobreza. Nada mau para quem alardeia querer pertencer ao pelotão da frente da Europa. A crise internacional só veio agravar uma situação já existente.
Por outro lado, ficou definitivamente afastado o mito que só com maiorias absolutas é possível garantir a estabilidade política e a governabilidade, pretendendo-se erigir essa condição a pilar fundamental de funcionamento do próprio sistema democrático. Como sublinhou Vasco Pulido Valente, De garantia da estabilidade, o PS passou numa noite a primeira causa de instabilidade num parlamento presumivelmente dividido. Isolado por sua própria culpa, Sócrates não tem destino. (Público, 13/6/09).
Mas ao mesmo tempo que desapareciam estes dois mitos, emergiu outro bem mais perigoso e de consequências bem mais perenes; o da ameaça da ingovernabilidade do país. Não é por acaso que alguns contestaram, desde logo, a utilidade da ida a sufrágio de uma pluralidade de forças políticas, considerando mesmo que tal facto representava uma fragmentação do sistema eleitoral. Os que assim pensam, reclamam insistentemente a alteração da lei eleitoral, que permita assegurar o pântano de um rotativismo castrador PS/PSD. É sintomático que Vital Moreira, na declaração de derrota, tenha afirmado Realço como dado não positivo, a redução dos resultados cumulativos do PS e do PSD, fazendo recear pela governabilidade do País, no futuro. Parece abrir-se, novamente, o caminho do centrão. Tal posição coloca, aliás, de forma inequívoca o PS/Sócrates na direita do espectro político português. Será esse o lugar desejado pelos socialistas? Não é certamente por acaso que, na noite eleitoral, tanto Alberto João Jardim como Vital Moreira tenham considerado o somatório da votação do BE e da CDU como um sintoma de doença democrática! No comentário certeiro de António Vilarigues, Jardim e Vital compartilham a concepção antidemocrática de que a esquerda pode existir desde que não governe nem constitua uma força capaz de influenciar a governação. (Público, 12/6/09).
Só que, com a dinâmica de vitória agora potenciada, dificilmente o PSD assumirá qualquer compromisso nesse sentido. É, aliás, provável que a crispação crescente que estes últimos meses de governação de Sócrates vão provocar no relacionamento entre estes dois partidos, sobreponha às evidentes afinidades políticas e ideológicas entre eles, as profundas incompatibilidades pessoais dos seus líderes e principais responsáveis, bem como dos interesses que uns e outros representam. Afastado qualquer cenário de maioria absoluta é imperiosa a clarificação das opções a tomar, já que o cenário político português sofreu uma significativa alteração. Mesmo dando de barato que pode não haver um reflexo imediato dos actuais resultados nas eleições legislativas desde logo por força de uma previsível diminuição da abstenção perspectivam-se, desde já, dois grandes blocos político-partidários de sinais opostos: um bloco à direita, formado pelo PSD e pelo CDS-PP e um bloco à esquerda reunindo o BE e a CDU. A pretensão enunciada pelo PS de governar sozinho não passa, dado o cenário traçado, de mera fanfarronice. Ninguém o poderá fazer.
O PS encontra-se, assim, no limiar de uma escolha política fundamental. A posição que vier a assumir vai ter, em qualquer caso, repercussões decisivas no futuro do país e do próprio partido. É que, dependendo da sua opção, pode escolher ser parte da solução ou parte do problema.
Hugo Fernandez