Ficou tristemente célebre, durante o fascismo, o grito ritual Quem manda? Quem manda? Quem manda? Salazar! Salazar! Salazar! Afirmava-se, desta forma, não só um poder absoluto, como uma visão fulanizada da política, em que o ditador era representado como um pater famílias, na mais perfeita tradição judaico-cristã, com a missão de preservar o que se designava por viver habitualmente. Só Salazar sabia o que era melhor para os portugueses e, por essa vigilância e orientação, estes deviam-lhe eterna gratidão. O Chefe apresentava-se como infalível e omnisciente. Por isso, o poder exigia obediência total à população e a divergência política era vista como desrespeito, na melhor das hipóteses, ou delinquência, na pior. Esta última atitude implicava o respectivo castigo que, consoante a gravidade da prevaricação, podia ir de uns safanões dados a tempo ao puro e simples assassinato. Em qualquer das situações, a dissensão era vista como uma intolerável afronta a um suposto Pai que velava pelo bem-estar de todos. A divergência era não só insuportável e, acreditava-se, fruto do mais acabado desvario como incompreensível, dada a evidente dedicação e altruísmo com que o poder era exercido. Salazar tinha casado com a Pátria. E a Pátria tinha obrigação de lhe agradecer. Seria uma gravíssima ofensa não demonstrar semelhante gratidão. Abandonava-se, assim, a esfera política e tudo se resumia ao âmbito pessoal.
Também Sócrates se sente ofendido. Desde que o caso Freeport reapareceu, que Sócrates se considera insultado e difamado. Tal como já tinha acontecido por causa da sua carreira académica ou das suas obras de engenharia. Não consegue discernir que, em todas estas situações, estão em causa questões públicas, com figuras públicas, no âmbito de funções públicas. Questões políticas, portanto. Para Sócrates não. Tratam-se de calúnias veiculadas por aquilo que designou campanha negra seguindo as técnicas habituais da deturpação e insídia, em que todos estão envolvidos até prova em contrário, invertendo mesmo o ónus da prova e pondo em causa o princípio básico do Estado de direito do in dubio pro reo. Até a campanha política da JSD, com a afixação do cartaz Pinócrates, que pretende denunciar as falsas promessas do Governo PS, foi considerada um insulto pessoal e não uma contestação política. Como justamente diz Pacheco Pereira, invocando o mito platónico relativamente ao diligente Augusto Santos Silva, Estamos na caverna, obviamente, de costas para o conhecimento e virados para a propaganda. (Público, 19/2/09).
Sabemos, assim, que para Sócrates, quem não está connosco está contra nós, como dizia o velho Botas. A diferença é que aquele tinha o aparelho repressivo necessário para eliminar a dissidência. Este apenas pode recorrer democracia oblige ao abafamento da contestação e à ostracização sistemática dos seus autores. Salazar suprimia, Sócrates exclui. Mas é semelhante a arrogância e prepotência da governação, a autosuficiência de ambos e o seu profundo desdém face às opiniões adversas. O primeiro seguia o figurino fascista; o segundo o padrão autoritário. A crença é, no entanto, similar. Perante um Governo que supostamente tão bem cuida dos interesses do país, só pessoas muito mal intencionadas podem contestar as políticas seguidas. São pessoas que, basicamente, estão contra as pessoas. As políticas do Governo não são passíveis de contestação pelo simples facto de que Sócrates não erra e sabe sempre o que é melhor para todos. Por isso manda e manda sempre bem. Por isso despreza os partidos da oposição. Por isso lhe é indiferente a contestação de um número crescente de portugueses ou mesmo de sectores profissionais inteiros, numa unanimidade surpreendente e nunca antes vista. Por isso faz da arrogância e do autismo um método permanente de actuação política. E por isso se ofende, tal como Salazar, quando alguém põe em causa os seus mandamentos. Com aquele a História já ajustou contas. Quanto a este, há uma árdua batalha a travar, em defesa da dignidade e da democracia.
Com efeito, o actual Governo destrói a liberdade, impede o diálogo, obriga a calar e obedecer. É assim, de resto, dentro do próprio PS, quando alguns militantes denunciam o clima de medo e intimidação existentes. Quando se sente contestado, Sócrates não discute propostas, ofende. Veja-se a desconsideração reiterada com que agride pessoalmente os seus adversários políticos e o permanente uso de argumentos ad hominem. Vejam-se os comentários grosseiros sobre imagine-se! a maneira de falar de alguns deputados, como aconteceu recentemente, com Francisco Louçã, num debate na Assembleia da República. Sócrates apenas se preocupou em ironizar a ênfase que este deputado colocou no tom de voz quando se referiu aos Bancos, esquecendo-se, porém, de justificar a política de favorecimento do sistema bancário seguida por este Governo e a sua responsabilidade na actual situação económica e social. Vejam-se as injúrias lançadas no recente Congresso do PS, em Espinho, contra pessoas e partidos da oposição, apelidando-os de irresponsáveis, parasitas ou cobardes, precisamente por aqueles que se dizem vítimas da infâmia, da calúnia e do insulto.
Sócrates ofende na arrogância e na brutalidade do mando, ofende na intolerância, ofende na indignidade com que trata indivíduos e instituições que o contestam. Sócrates não admite outras opiniões e esmaga a diferença. Compreendem-se, por isso, as palavras de Vitorino Magalhães Godinho: Não temos democracia em Portugal, isso é fantasia. [Temos] um Estado corporativo como Salazar sonhou e nunca conseguiu. (Diário de Notícias, 27/2/09).
Hugo Fernandez