O inefável Pedro Norton, na sua habitual crónica na revista Visão, começa por nos alertar para as consequências da crise económica por que passamos, dizendo que ninguém duvida que seremos forçados a mudar, estruturalmente, de hábitos e de estilo de vida. (Visão, 12/2/09). Esta promissora afirmação, reveladora de uma sensatez e de uma sensibilidade social surpreendentes na personagem em questão, culmina no apelo de que é chegada a altura de pensar na política. Não podíamos estar mais de acordo. Mais adiante, diz mesmo Porque será política a próxima crise. Porque está criado um caldo explosivo para fazer da política o cenário do próximo terramoto. Isto promete, pensamos. Mas eis senão quando, umas linhas abaixo, Pedro Norton nos brinda com a pérola, Falo de uma crise da própria Democracia e dos valores Liberais (digo bem: Liberais) [sic] que a sustentam., para logo a seguir desferir a estocada final: Precisamos, mais do que nunca, de cuidar dos valores liberais que são, há mais de 20 anos, o sustentáculo da democracia e da civilização ocidental. Bem Relevando uma referência cronológica no mínimo estranha e conceitos mais do que discutíveis, e mesmo passando por alto a proposição E não falo apenas «da rua» e do aumento do descontentamento dos contribuintes, do desespero dos desempregados, da angústia dos que não conseguem projectar o amanhã. minudências, está bem de ver! o nosso autor introduz-nos no âmago da verdadeira perplexidade que aflige actualmente os pensadores do sistema. Não está, aliás, sozinho nesta demanda. O editorialista do Público, Paulo Ferreira, embora reconhecendo o falhanço dos mecanismos de controlo do mundo empresarial, não deixa de sublinhar que compete ao Estado suprir esta dramática falha no mercado. Contra o mercado? Não. Para defender o mercado daquela que é hoje a principal ameaça: os seus próprios excessos. (Público, 12/2/09). É preciso ter lata!
Ficamos assim a saber que, perante o evidente colapso da actual ordem das coisas, enquanto uns assobiam para o lado e esperam que a crise passe, outros consideram que a melhor defesa é o ataque. O mal não está neste modelo económico e social neo-liberal, mas apenas nos seus excessos, por via da irresponsabilidade, ganância ou incompetência de alguns agentes empresariais. Arranjando-se meia dúzia de bodes-expiatórios, resolve-se o problema pelo menos o problema de consciência. Resistindo à realidade, alguns militantes da causa, como o dirigente liberal francês Alain Madelin, não hesitam em afirmar Deixem os liberais de fora desta crise; não se trata de uma derrota das teorias liberais, nem sequer dos mecanismos liberais (Le Monde Diplomatique, 6/2/09). Por seu lado, o economista e historiador Nicolas Baverez insiste que O liberalismo não é portanto a causa, mas a solução para a crise do capitalismo globalizado (ibidem). Há mesmo quem culpe o Estado pelo facto de não ter sido suficientemente liberal, empurrando, por via de sucessivas regulamentações monetárias e cambiais, os inocentes empresários e especuladores financeiros para a bancarrota. Ficamos pasmados com tanta clarividência!
Relegando a actual situação económica e financeira para a esfera da regulação normal dos próprios mercados e considerando as crises como um mecanismo periódico de purificação do sistema capitalista, estes autores esquecem o colapso generalizado dos sistemas financeiros nacionais e internacionais, a quebra sem precedentes do comércio mundial, a espiral generalizada de falências e desemprego e a necessidade de intervenções maciças dos Estados para tentar salvar as economias. Todos estes factores ultrapassam em muito o âmbito da mão invisível do mercado. Poderá não ser a crise fatal do capitalismo. Mas que terá que haver uma redefinição das regras do jogo, parece-me uma evidência. Dificilmente bastará brandir o habitual fantasma dos aproveitamentos esquerdistas ou de supostas derivas demagógicas esperando-se, sobretudo, que tudo continue na mesma.
Aquilo que o próprio presidente da Reserva Federal Americana, Alen Greenspan, designou por exuberância irracional dos mercados (Le Monde Diplomatique, 6/2/09), é o resultado premeditado das políticas neo-liberais estabelecidas pelo chamado consenso de Washington que, desde os anos 80 do século passado até aos nossos dias, muito claramente defenderam a liberalização total do comércio mundial, o desmantelamento do sector empresarial do Estado, a financeirização da economia e a desregulamentação do mercado de trabalho. Basta recordar os consulados de Ronald Reagan ou Margaret Thatcher, bem como os mais recentes de George W. Bush e Tony Blair ou, no caso do nosso país, de Cavaco Silva a José Sócrates.
Então não são precisamente os invocados valores liberais que incitam ao individualismo extremo e ao egoísmo primário, ao êxito social a qualquer preço, rejeitando a mínima cooperação e solidariedade entre as pessoas e fazendo a apologia constante do direito do mais forte, mesmo que esse direito ponha em causa a dignidade de todos os outros, que explicam o ponto a que se chegou? Não foram precisamente as teses da liberalíssima Escola de Chicago e do seu mais lídimo representante, o Prémio Nobel da Economia em 1976, Milton Friedman ensaiadas no Chile de Augusto Pinochet que estiveram na origem da actual situação? Não é com base nesses mesmos valores que se assiste a uma crescente monetarização de todos os aspectos da vida pessoal e social e ao carácter verdadeiramente predatório e desumano de um sistema assente no desequilíbrio abissal entre as remunerações do trabalho e do capital, com a maximização desmesurada dos lucros por contraste com a absoluta precarização do emprego e o drástico decréscimo dos rendimentos da generalidade da população, fazendo aumentar exponencialmente as injustiças sociais? Não tem sido através das mais mesquinhas engenharias financeiras, da proliferação das offshores, da socialização das perdas e privatização dos lucros, dos crescentes investimentos especulativos e da indução do sobreendividamento, que assistimos à implementação dos princípios canónicos da liberalização, flexibilização, desregulamentação e globalização? Não é precisamente esta escalada de disrupção social e económica, associada aos fenómenos cada vez mais acentuados da corrupção e das fraudes à escala planetária, que corporiza a passagem de um estado de welfare para o warfare?
É que, como diz o insuspeito Paulo Ferreira, num editorial do Público, Uma das causas principais desta crise financeira está nos pacotes salariais dos gestores dos bancos. Porque uma coisa é a prática saudável de premiar o mérito e remunerar em função dos resultados. Outra, bem diferente, é a autêntica pornografia a que se chegou. (12/2/09). Pois é. Parafraseando o título da crónica de Pedro Norton, É a política, estúpido!
Hugo Fernandez