Contrafactos e os seus argumentos é um artigo assinado por Paulo Moura no Público do passado dia 5 de Julho, a propósito do seminário sobre História Virtual de Portugal, realizada no Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa.
E se as coisas não tivessem acontecido como aconteceram? É deste pressuposto que partem sempre as investigações será melhor dizer, especulações da chamada História Virtual ou Contrafactual, corrente lançada pelo historiador britânico Niall Fergusson em 1997, sobre as consequências de uma vitória nazi na II Guerra Mundial ou (para o efeito, tanto faz!) a hipótese de Hitler não ter conseguido chegar ao poder se a Alemanha tivesse triunfado em 1918. Pretendendo explorar possibilidades verosímeis (e com isso ganhar um estatuto de cientificidade que, de facto, não tem), o contrafactualismo baseia-se em duas falsidades epistemológicas essenciais. Visa contrariar um pretenso determinismo de uma visão marxista da História (sempre ela!) e desvalorizar causalidades estruturais, enfatizando o papel do indivíduo. Acontece que nem a primeira asserção é verdadeira, nem a segundo tem muito cabimento. Com efeito, esquece-se de uma penada, a monumental produção teórica e historiográfica de centenas de autores marxistas a começar pelo próprio Marx que, de há muito, vêm denunciando esquemas mecanicistas e determinismos simplistas (reivindicando-se do marxismo ou de outra coisa qualquer), demonstrando nos seus estudos, pelo contrário, a complexidade das relações sociais existentes e a diversidade dos modos de funcionamento das sociedades ao longo da história. Trata-se, aliás, da conhecida técnica de caricaturizar as ideias que se quer rebater e, de seguida, criticar a caricatura feita. Esquece-se também toda uma numerosa e influente corrente historiográfica, largamente influenciada pelo pensamento marxista, que vai dos Annales à Nova História ou à actual escola da Sociologia Histórica, que perspectiva esta mesma complexidade na compreensão do papel dos indivíduos na História, mostrando não só as possibilidades e virtudes do seu protagonismo, como os constrangimentos e limites da sua acção, desta forma ultrapassando meros propósitos laudatórios e sobrevalorizações mistificadoras, que se revelam estéreis em termos explicativos.
Acresce que a História Contrafactual demonstra uma assinalável ignorância metodológica. Considera que o estudo das razões invocadas, das hipóteses contraditórias levantadas, dos vários cenários tomados em consideração pelos actores históricos, antes das decisões tomadas ou prévios aos acontecimentos ocorridos, são a melhor prova de que, na história, há sempre várias possibilidades e alternativas de caminhos a seguir, havendo que contar com fortes factores de imprevisibilidade e de arbítrio no desfecho das situações. Só que, ao contrário do que supunham, não descobriram a pólvora! Aquilo que passa por ser a grande novidade desta corrente historiográfica, não é mais do que démarche obrigatória para todos aqueles que investigam o funcionamento das sociedades. Só compreendendo as causas dos fenómenos, analisando as dinâmicas das sociedades em questão, conhecendo as evoluções e constrangimentos existentes e auscultando as motivações e pensamento dos agentes envolvidos a tal complexidade de factores a que nos referíamos anteriormente é possível fazer história. Até aqui, nada de novo.
O que foi verdadeiramente surpreendente e elucidativo neste seminário do ICS, sobre o que poderia ter acontecido se Jorge Sampaio não tivesse convidado Santana Lopes para formar Governo em Julho de 2004, foi a revelação, por quem a viveu de perto, das razões desta indigitação. Carlos Gaspar, à época conselheiro do Presidente, conta-nos o dilema colocado: se Sampaio tivesse decidido dissolver o Parlamento e convocar eleições, seguindo, aliás, o que fez com António Guterres em 2001 e o que Mário Soares tinha feito com Cavaco Silva em 1987, isso corresponderia a uma desvalorização do papel presidencial e configuraria uma espécie de presidencialismo do primeiro-ministro que passaria a poder, quando assim o entendesse, demitir-se a fim de provocar a convocação de eleições antecipadas. Tomando a decisão que tomou, Sampaio salvou, portanto, o regime presidencialista e preservou a sua própria margem de manobra. Que primor de calculismo político! Que fino recorte maquiavélico! Mas, sobretudo, que enorme inconsciência quanto ao futuro do país. Que enorme falta de respeito pelos portugueses. Que leviandade e ligeireza na distorção do princípio básico da representação política e no dever de dar, sempre que tal é necessário, a voz aos cidadãos. É que a democracia é precisamente isto! Ou já se esqueceram?
A serem verdadeiras as declarações de Carlos Gaspar, Jorge Sampaio sai muito pior do retrato do que já estava. Admitindo, ainda que com ironia, o seu desconforto em falar do assunto, o conselheiro do Presidente profere, a propósito deste cenário contrafactual, uma frase assassina: É como pedir a um criminoso que fale do seu próprio crime. Pior ainda: pedir-lhe que imagine o que aconteceria se não o tivesse cometido. Pois é!
Hugo Fernandez